São Paulo, segunda-feira, 11 de novembro de 2002

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A nova sinfonia do desenvolvimento

MARIO GARNERO


Erradicar a pobreza é o resultado da colocação da vontade política a serviço do desenvolvimento sustentado

O Brasil vive, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, momento ímpar de coesão nacional. Tal união não é apenas simbologia. É expressão de uma vontade consensual. A figura do presidente Lula condensa um projeto de mobilidade social e econômica. Traduzido em termos de políticas sociais estratégicas, esse projeto tem por objetivo o resgate de amplos contingentes populacionais da miséria e da fome.
Falamos aqui, portanto, de uma política de desenvolvimento -expressão algo esquecida em meio a artificialidades cambiais, novas economias e turbulência nos mercados. Mas o que quer dizer mesmo desenvolvimento? Para além da moderna "sociometria" do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), que conjuga justificadas ponderações humanitárias ou ambientais, na reflexão do professor Amartya Sen, desenvolvimento é, sob qualquer critério, sinônimo de crescimento sustentado da renda. E tal expansão é resultado do ciclo virtuoso que implementa a dinâmica "poupança-investimento-produção-aperfeiçoamento-produtividade-aumento da renda".
Cabe, então, perguntarmo-nos quais as chaves para o desencadeamento dessa espiral benéfica. A ênfase no desenvolvimento no início do governo Lula traz à mente, ademais, o desafio que o saudoso presidente JK enfrentava na virada dos anos 50 para os 60.
O "Zeitgeist", espírito de uma época, do governo Lula apresenta, no entanto, vantagens sobre o de JK. O percentual, por exemplo, de votos em Lula é superior ao de Juscelino, o que apenas reforça a tese da coesão nacional. Desde o primeiro momento, esse "juntar de forças" vem ganhando os contornos da construção de um novo contrato social.
O Brasil de Lula insere-se, contudo, numa atmosfera de significativa estiagem internacional de capitais. É também um mundo de cinismo muito menos disfarçado na aplicação, por parte dos países ricos, de barreiras comerciais de toda a ordem. Iliquidez no front financeiro. Marcado protecionismo nas trocas internacionais. É com esse ambiente externo que Lula deve dar sentido prático a outra unanimidade, a fundamental coesão nacional na luta contra a fome.
Nesse contexto, há que diferenciar dois desafios. O primeiro é o da diminuição da pobreza. Para tal fim, o programa de governo do Partido dos Trabalhadores apresenta sofisticados e inovadores mecanismos, como o programa Renda Mínima, a viabilização de "genéricos" alimentícios, a utilização das redes de varejo existentes para a distribuição de cestas básicas etc. Tudo isso contemplado por instrumentos fiscais que, otimizados, não oneram as metas de responsabilidade orçamentária.
Mas é preciso ir além. O segundo e maior desafio é o da erradicação da pobreza. Aliviar a pobreza, mitigar a fome, é combater emergencialmente uma epidemia. Erradicar a pobreza é retirar uma enfermidade que, endemicamente, há 500 anos aflige o organismo nacional. Aliviar a pobreza é uma ação pontual. Erradicar a pobreza é o resultado da colocação da vontade política a serviço de um projeto de desenvolvimento sustentado. De fato, essa vontade política deve ser representada, como bem argumenta o presidente eleito, por um novo pacto social, um inovador tratado produtivo que congregue governo, trabalhadores e empresários.
A versão embrionária desse contrato se delineou na própria percepção do presidente eleito, a partir da experiência que viveu nos anos 70 e 80, à frente das negociações trabalhistas. Foi a partir de tais tratativas que se lançaram as bases para a melhoria não apenas salarial, mas de estabilidade do emprego e aprimoramento da saúde, educação e condições de trabalho de ampla parcela dos trabalhadores.
O pacto terá de se erguer, nacionalmente, sobre um tripé de reformas. Remodelar a seguridade social, evitando a transferência para as gerações futuras de um ônus que a elas não é devido. Oferecer, assim, o lastro de uma poupança interna -condição básica de qualquer rumo de desenvolvimento. Reordenar os tributos, o que implica uma verdadeira "refederalização fiscal". Tal reforma servirá como estímulo à produção, ao consumo e, especialmente, ao robustecimento das exportações, instrumento complementar da poupança interna para o desenvolvimento sustentado.
Trazer a legislação trabalhista às necessidades do Brasil do século 21, eliminando destarte os resquícios paternalistas que ainda vigoram. Esse anacronismo tem o poder de expulsar da formalidade e da rede de proteção social metade da população economicamente ativa.
Desse novo pacto social, completadas as reformas e dinamizada a competitividade do produto brasileiro no exterior, com superávits comerciais superiores a US$ 20 bilhões ao ano, antevejo poupança para financiar -aí, sim, em bases sustentadas- o tão almejado desenvolvimento. Sobre esses pilares, crescer a taxas anuais superiores a 5 % é um objetivo plenamente realizável. Cabe enveredar nesse rumo.
Na virada dos anos 70 para os 80, indústria e trabalhadores conduziram o processo. O governo veio atrás. Hoje, numa sociedade democrática, com Lula à frente, o governo deve oferecer o exemplo e a liderança. Entendo que essa deva ser a tarefa precípua da proposta de institucionalização de um Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social que ora se delineia.
A nova sinfonia social demandará afinação política, empresarial e trabalhista. Em síntese, exigirá a capacidade de articulação e o talento de um maestro. O tema forte do combate imediato à fome e da luta de fôlego pelo desenvolvimento é "negociação". O Brasil, então, tem sorte. Lula é do ramo.


Mario Garnero, 64, empresário, é presidente do Grupo Brasilinvest e do Fórum das Américas.


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