São Paulo, domingo, 12 de maio de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A ostra e a pérola

RIO DE JANEIRO - No final da pales
tra com estudantes em Brasília, na semana passada, a primeira pergunta que me fizeram foi inesperada: a moça levantou-se e quis saber o que havia dentro ""daquele embrulho".
Custei a entender a coisa. Que embrulho? Afinal, eu estava ali falando de coisas sérias, havia professores, um representante da Unesco, e a moça falava num embrulho. Não havia embrulho nenhum sobre a mesa nem me haviam dado nenhum presente, embrulhado ou não.
Mas outros estudantes pediram que eu revelasse o que havia dentro ""daquele embrulho", e só então, tardiamente como compete aos burros, desconfiei que eles se referiam a um embrulho que coloquei num romance, embrulho que recebera de um pai que havia morrido dez anos antes.
E eu lá sabia o que havia ali? Não o abri na vida real nem na quase ficção do romance. Para me desapertar, não fui modesto: lembrei aquelas ostras que os japoneses apanham e nelas colocam um grãozinho de areia, minúsculo, inofensivo. Devolvem as ostras às pedras do mar e esperam.
Com aquele corpo estranho dentro delas, as ostras fabricam uma defesa imunológica, rodeando o grão de areia com uma substância pastosa que depois se solidifica, tornando-se uma pérola.
Bem, como disse acima, não fui modesto. A comparação com a pérola certamente é alucinação minha. Nem que o mundo caia sobre mim serei capaz de produzir qualquer coisa parecida com uma pérola.
Mas a mecânica da ostra, diante do corpo estranho (o grão de areia) que nela introduziram, foi parecida com a minha reação diante do misterioso embrulho que o pai, morto há dez anos, me enviara naquele dia.
Não o abri. Nem quis saber o que havia nele. Fosse o que fosse, não mudaria nada na vida que ele tivera e eu ainda teria. Evidente que não resultou numa pérola nem eu sou exatamente uma ostra. Mas seria bom se fosse.



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