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São Paulo, sexta-feira, 12 de setembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O novo Brasil de sempre

EVELYN BERG IOSCHPE

 Teu milho está mais maduro hoje. O meu estará amanhã. É vantajoso para nós dois que eu te ajude a colhê-lo hoje e que tu me ajudes amanhã. Não tenho amizade por ti e sei que também não tens por mim. Portanto não farei nenhum esforço em teu favor. Sei que, se eu te ajudar, esperando alguma retribuição, certamente me decepcionarei, pois não poderei contar com tua gratidão. Então, deixo de ajudar-te e tu me pagas na mesma moeda. As estações mudam. E nós perdemos parte de nossas colheitas por falta de confiança mútua.
David Hume

O que, exatamente é novo no país de Lula? Novos personagens, com novos códigos, nova linguagem -tudo isso é novo e mobiliza a curiosidade do cidadão. A desenvoltura do líder da equipe, que surpreende na alegria com o poder que nem a liturgia do cargo obscurece, fez com que a novidade acabasse em muito pouco tempo.
Num país de forte verticalização na cultura política, em que o "coronel" foi substituído pelo "painho" e este pelo "patrão", temos agora o antipatrão dirigindo os destinos do país. A equipe que preparou essa transição tinha consciência da empreitada: a sociedade não deposita confiança automaticamente em seus líderes, sobretudo se estes provêm de um extrato social que ao longo da história não gerou governantes.
O que é novo no jeito Lula de ser Brasil é justamente isso: como a confiança não está dada, ela precisa ser construída. Passo a passo. Falando com todos os interlocutores, e não só com os interlocutores institucionalizados no Brasil do século passado. Na verdade, o Brasil do milênio passado -em nosso imaginário, uma longa transição ocorreu num curtíssimo espaço de tempo.


O que o país de Lula tem de novo é o esforço para emplacar uma cultura da confiança, e isso não é pouco


A conquista de legitimidade levou ao aprofundamento das relações horizontais: é preciso gerar comitês, conselhos, forças-tarefas, debates com o público e o que mais se puder imaginar para criar o que Tarso Genro está chamando de consertação social e que, num primeiro momento, respondia pelo título um tanto altissonante de "pacto social".
Novo é o pressuposto desta elite dirigente (sim, trata-se da elite dirigente) de que é possível, sim, estabelecer com os cidadãos um nível de confiança que dê lastro à governabilidade. O Brasil vivencia historicamente um baixo nível de confiança entre pessoas e instituições que se expressa na desfaçatez com que o clientelismo é praticado. Os políticos, ao trocarem convicções por cargos, estão dizendo que, entre eles, não há confiança numa confiança no projeto de nação. Cada qual defende o seu quinhão de acesso ao poder.
A baixa confiança que vem acompanhando nossa história explica a passividade e o conformismo que nos acostumamos a identificar como traços constitutivos de nossa nacionalidade. O indivíduo que não tem confiança nas instituições internalizou a idéia de que a crítica é inútil, pois não será ouvida e, portanto, não tem eficácia; de que as instituições são dominadas por grupos auto-referenciais que funcionam tendo como razão de ser não o bem comum, mas a perpetuação de seus privilégios.
O que o país de Lula tem de novo é o esforço para emplacar uma cultura da confiança, e isso não é pouco. Se políticos, empresários, trabalhadores, acadêmicos, intelectuais, artistas e estudantes chegarem a acreditar que podem depositar confiança uns nos outros, o que equivale a dizer que todos podem depositar confiança no desejo de todos -construir um país melhor para todos-, estará criado o que o sociólogo americano James Coleman chama de capital social, o único que não se gasta com o uso.
O conceito diz respeito à capacidade de as pessoas trabalharem juntas, visando objetivos comuns a partir de uma confiança fundamental no compartilhamento desses objetivos. Como explica Antonio Carlos Gomes da Costa, o teórico do terceiro setor, para florescer e dar frutos, o capital social precisa de uma cultura de confiança que se traduza na prática cotidiana da cooperação. O inverso também é verdadeiro: fisiologismo, clientelismo, burocracia, formalismo e passividade precisam ser entendidos como entraves para chegar lá.
A mudança de padrão cultural é, possivelmente, a mais lenta de todos as mudanças. O ser humano é complexo e movido por impulsos egoístas que visam a sua autopreservação. Esse comportamento só será substituído por um impulso altruísta se o indivíduo aprender que, por meio da colaboração, poderá chegar a melhores resultados.
O Brasil de Lula oferece uma oportunidade rara. Ao deslocar antigas oligarquias e certezas, apresenta um olhar novo sobre o de sempre. É uma janela de oportunidade: as pessoas são as mesmas, o mesmo milho cresce no campo, os mesmos buracos na estrada. Só que tudo isso foi colocado em perspectiva e a platéia subiu ao palco. Num átimo, a janela se fechará novamente. Basta que os cargos voltem a ser loteados, que os poderosos de ocasião utilizem a instituição com o objetivo primeiro de engordar o seu patrimônio pessoal para que cada um se volte sobre seu quintal para garantir única e exclusivamente sua própria plantação. E que esse capital social incipiente gerado pela solidariedade dos novos tempos se esvaia nas dobras do Brasil de sempre.

Evelyn Berg Ioschpe, 54, socióloga e jornalista, é presidente da Fundação Ioschpe e do Instituto Arte na Escola.


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