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São Paulo, quarta-feira, 12 de novembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

"A Bagaceira" e "O Quinze"

RIO DE JANEIRO - Após a sessão de saudade dedicada a Rachel de Queiroz na ABL, o mestre Celso Furtado consultou-me, em sua humildade de intelectual cinco estrelas, sobre o lugar-comum que atribui a seu conterrâneo, José Américo de Almeida, com o romance "A Bagaceira", de 1928, o início do ciclo regional nordestino de nossa literatura.
Eu havia dito, na minha ligeira intervenção, que o ciclo teve começo com "O Quinze", de Rachel, e não com a obra do Zé Américo. É evidente que, durante a sessão, não houve espaço nem conveniência para explicação mais detalhada. Limitei-me a dizer que "A Bagaceira" é regionalista em termos -somente em tema, não em linguagem- e que literatura nunca é tema, é linguagem.
A prosa de Zé Américo é até anterior à da Semana de Arte Moderna, de 1922, anterior à de Lima Barreto e até mesmo à de Machado de Assis, um autor basicamente do século 19.
Rachel foi realmente a primeira regionalista. O livro de Zé Américo seria pioneiro do ponto de vista sociológico, mas tivemos obras anteriores com a temática social e regional em primeiro plano, mas sem a linguagem correspondente.
Basta lembrar que as parábolas de Cristo são todas regionais. Renan chega a declarar que os Evangelhos são um auto pastoril, com suas histórias de joio e de trigo, de ovelhas perdidas, de filhos pródigos, de samaritanos, de figueiras sem frutos, de cântaros com água e vinho, de candeias sem azeite e searas douradas, de trabalhadores de undécima hora, de campos semeados. Todas as imagens e parábolas do cristianismo inicial são regionais, não chegam a ser regionalistas.
A temática não faz de "A Bagaceira" um livro que possa ser considerado modernista. O mesmo ocorre com "Canaã", de Graça Aranha. Num pólo oposto, a temática de Guimarães Rosa é quinhentista quase, quase medieval. Mas sua linguagem é uma referência do mais moderno de nossa literatura.


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