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São Paulo, quinta-feira, 13 de março de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Qual será o perdedor na guerra iminente?

JORGE BOAVENTURA

O espaço de que dispomos, em face da complexidade inferível do título acima, sugere-nos a adoção de um estilo lacônico, pelo qual pedimos desculpas ao leitor, ousando entretanto dizer-lhe que, se perseverar na leitura do texto, ao terminá-la terá, supomos, de certos temas visão profundamente diferente da que tinha antes.
Vamos ao assunto: a guerra iminente não será dos EUA e Inglaterra contra o Iraque. Será travada entre a que temos chamado de "nação pluriestatal" e o Iraque. A referida nação, ela sim, compõe o maior poder da Terra e se constitui dos servidores do "deus" Mercado, que, de há muito, substituiu em nossa civilização o Deus do cristianismo e dos judeus. A servi-lo, constituiu outra "deusa", a "democracia", que na verdade não é mais do que uma falsificação deturpada daquele ideal insubstituível, que a referida deusa degrada e prostitui.
Quais são os servidores do deus Mercado? São todos os que pretendem que a economia se constitua em ente autônomo, atuando sem considerar as exigências que, em relação a ela, decorrem da fonte factualmente inegável, da civilização agora em agonia a que pertencemos, representada pelas Escrituras Sagradas. Se estas foram fruto de revelação por causa externa à natureza, ou não, é outra discussão, que não caberia travar agora.
Os servidores do deus Mercado pertencem a várias etnias e culturas, tendo naturalmente como núcleo mais articulado e influente os que se conservaram ao longo do tempo mais homogêneos e solidários. A nação pluriestatal que eles integram está presente em todos os países do mundo, atuando em níveis diferentes de influência e sempre no anonimato, por detrás de governos títeres -conscientemente ou não-, em alguns casos levando a influência a um domínio praticamente total.
O anonimato lhes tem sido garantido através de séculos, pelos governos que lhes servem de biombos e pela alegação de pretextos nobres a esconder-lhes os objetivos reais, muitas vezes inconfessáveis. Agora, alegam a necessidade de derrubar o ditador iraquiano, ao mesmo tempo em que são amigos e aliados de outras ditaduras, como é público e notório. Assim, nada de falar no petróleo do Iraque, no anti-sionismo do seu ditador, nem no fato de situar-se aquele país na famosa "rota da seda", de domínio almejado já por Gengis Khan, eis que quem a controle controlará a Ásia Central. Fala-se na ditadura e nas terríveis armas iraquianas que estariam ameaçando o mundo inteiro.
Armas que todas as grandes potências possuem, inclusive o Estado de Israel, terceira potência nuclear do mundo. E, quando falamos de grandes potências, estamos incluindo pelo menos uma, sob regime ditatorial, materialista e ateu, grande parceira dos EUA que recebe o seu ditador com tapete vermelho e a mais efusiva consideração. Por quê? Porque é o que convém ao Mercado.


Nós acreditamos na Providência, e é ela que está fazendo com que os povos rejeitem a guerra


Como conseguiu a nação pluriestatal tanto poder e êxito? É aí que entra a deusa democracia, a que já nos referimos. Ela é fruto direto da "Declaração Universal dos Direitos dos Homens e dos Cidadãos", consequente à Revolução Francesa. O art. 6º da declaração estabelecia que "a lei é a expressão da vontade geral, manifestada diretamente, ou por intermédio de representantes". Acrescentando adiante que "ninguém será obrigado a fazer, ou a deixar de fazer nada, a não ser em virtude de lei". E tudo isso constitui a viga mestra das "democracias" que convém ao deus Mercado. E pouquíssima gente se deu conta de que, assim, desvincula-se o processo civilizatório de suas bases culturais, com as suas recomendações e exigências.
Quem, a partir de então, dispusesse dos meios hábeis para garantir as maiorias legislativas teria o controle do processo civilizatório, isto é, a capacidade de transformar o bem em mal, o vício em virtude, a mentira em verdade. Como ao deus Mercado e aos seus manipuladores da nação pluriestatal interessa manter as massas subjugadas ao seu insaciável apetite de bens materiais, realizável por intermédio do consumismo absurdo, inversor da ordem natural das coisas e estuprador do meio ambiente, nada melhor do que corrompê-las. Como? Tornando a liberdade um ideal que se esgota em si mesmo, sem compromisso com a finalidade do seu exercício, como o exigem as bases da nossa cultura, o que a degrada na licenciosidade crescente, coadjuvante de todos os vícios, de todas as violências, de tudo o que vem transformando a "democracia", deliberadamente falsificada em pouco mais do que uma prostituta devassa, e de situações nacionais e internacionais crescentemente mais cruéis, irracionais e injustas.
Em face dos argumentos expostos e de muitíssimos outros, chegou a hora de responder à pergunta acima: o perdedor da guerra será a nação pluriestatal, acompanhada do deus Mercado e da deusa "democracia", seu instrumento de ação. Aliás, no campo psicossocial já a está, manifestamente, perdendo.
Quanto à ordem ou desordem internacional que ela instituiu, o que resta da Otan, com França, Alemanha e Rússia unidas contra os "defensores da democracia", quando a Otan foi criada ao tempo da Guerra Fria e do Pacto de Varsóvia? E a guerra iminente, o que deixará de respeitabilidade à ONU? Nós acreditamos na Providência, e é ela que está fazendo com que os povos rejeitem a guerra, salto qualitativo contra os interesses que dominam a comunicação e a estão perdendo. Merece meditação.

Jorge Boaventura de Souza e Silva, 80, ensaísta e escritor, é conselheiro do Comando da Escola Superior de Guerra.

www.jorgeboaventura.jor.br


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