São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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O leite derramado

CARLOS HEITOR CONY


Rio de Janeiro - Quando se olhava no espelho, não gostava do que via, mas se aceitava com placidez: ele era aquilo que estava vendo. O tempo passou, e até se habituou, afinal, cada um tem a cara que merece.
Com aquele rosto ele trombara com o mundo, fora em frente -mesmo porque ninguém lhe ensinara a ir para trás. Quebrar a cara fazia parte da vida, não sentaria no meio-fio da rua para chorar o leite derramado.
Nem tudo foi aflição de espírito. Tivera seus momentos, não podia se queixar e na realidade nunca se queixara. Um dia, uma das mulheres que lhe deram mais trabalho olhou seriamente para ele e admitiu: ""Não sei como fui gostar de um cara com a sua cara".
Ele estava na fase em que a cara vinha naturalmente ao seu encontro no espelho, tão neutra que não mais a estranhava. Para ser honesto: volta e meia chegava a gostar um pouco dela, afinal, era assim que os outros o viam e fora assim que ele não sentara no meio-fio da rua para chorar o leite derramado.
Foi de repente: na noite de um domingo em que trabalhara desde cedo num parecer para a Procuradoria Geral do Estado. Não viu as horas passarem. Quando acabou, era quase segunda-feira e ele não havia tomado banho nem feito a barba. Podia deixá-la para a manhã seguinte, mas aprendera com o pai que devia barbear-se todos os dias.
Antes do banho, enfrentou o espelho. Lá estava aquela cara que era a dele. Quando lavou o rosto e o enxugou, alguma coisa misteriosa aconteceu, não com ele, mas com o espelho. Nele apareceu um estrangeiro, um homem que ele nunca vira. Um ou outro detalhe podia lembrar alguém, mas positivamente era um estranho que ali estava.
Não era mais uma questão de aceitar ou não o desconhecido que olhava para ele. Nem era uma cara abominável. Era apenas uma cara que nunca tivera coragem de sentar no meio-fio e chorar pelo leite derramado.


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