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O leite derramado
CARLOS HEITOR CONY
Rio de Janeiro - Quando se olhava no
espelho, não gostava do que via, mas
se aceitava com placidez: ele era aquilo que estava vendo. O tempo passou,
e até se habituou, afinal, cada um tem
a cara que merece.
Com aquele rosto ele trombara com
o mundo, fora em frente -mesmo
porque ninguém lhe ensinara a ir para
trás. Quebrar a cara fazia parte da vida, não sentaria no meio-fio da rua
para chorar o leite derramado.
Nem tudo foi aflição de espírito. Tivera seus momentos, não podia se
queixar e na realidade nunca se queixara. Um dia, uma das mulheres que
lhe deram mais trabalho olhou seriamente para ele e admitiu: ""Não sei
como fui gostar de um cara com a sua
cara".
Ele estava na fase em que a cara vinha naturalmente ao seu encontro no
espelho, tão neutra que não mais a estranhava. Para ser honesto: volta e
meia chegava a gostar um pouco dela,
afinal, era assim que os outros o viam
e fora assim que ele não sentara no
meio-fio da rua para chorar o leite
derramado.
Foi de repente: na noite de um domingo em que trabalhara desde cedo
num parecer para a Procuradoria Geral do Estado. Não viu as horas passarem. Quando acabou, era quase segunda-feira e ele não havia tomado
banho nem feito a barba. Podia deixá-la para a manhã seguinte, mas
aprendera com o pai que devia barbear-se todos os dias.
Antes do banho, enfrentou o espelho.
Lá estava aquela cara que era a dele.
Quando lavou o rosto e o enxugou, alguma coisa misteriosa aconteceu, não
com ele, mas com o espelho. Nele apareceu um estrangeiro, um homem que
ele nunca vira. Um ou outro detalhe
podia lembrar alguém, mas positivamente era um estranho que ali estava.
Não era mais uma questão de aceitar ou não o desconhecido que olhava
para ele. Nem era uma cara abominável. Era apenas uma cara que nunca
tivera coragem de sentar no meio-fio e
chorar pelo leite derramado.
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