São Paulo, segunda-feira, 13 de maio de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

De retalho em retalho

RIO DE JANEIRO - Não faço parte do
fã-clube do finado cantor Nelson Gonçalves, nem de Adelino Moreira, seu autor preferido, falecido semana passada. Bem ou mal, cultivo outras devoções, mas resistir quem há-de?
Ali pelos anos antigos de um passado mais ou menos recente, andei curtindo uma mulher que me era proibida por diversos motivos, inclusive pelo fato de sermos, ambos, casados e bem casados.
Não a tirava da cabeça, de parte a parte caímos na sordidez dos encontros até mesmo nas matas da Tijuca -e de tudo isso resultou, também de parte a parte, uma dor-de-corno que o tempo curou com dores do mesmo tipo.
Foi então que, ligando o rádio do carro, ouvi um sucesso da época, se não me engano chamado "Escultura", letra e música de Adelino Moreira na voz tonitruante de Nelson Gonçalves.
O mau gosto das imagens era de doer. Em sonho, o escultor lembrava a Pompadour, Frinéia, acho que lembrava Helena de Tróia, enfim, invocava as mulheres mais famosas da história e da lenda. E terminava cantando: "E assim, de retalho em retalho, terminei o meu trabalho, o meu sonho de escultor, e quando cheguei ao fim, tinha diante de mim, você, inteirinha, meu amor".
O que pode uma dor-de-corno! Trocaria toda a poética universal, de Homero em diante, por essa quadrinha infame. Não cheguei ao exagero de comprar o disco que era o mais vendido naquela ocasião. Mas se ouvia a estrofe fatal em todos os rádios ao longo dos trilhos da Central do Brasil e da Leopoldina Railway, onde ainda há amantes e cornos em profusão.
Morreu o Adelino, ao que dizem os jornais, deprimido porque, apesar do sucesso de sua produção cafona, sentia-se injustiçado pela mídia.
Dei a volta por cima naquele caso escabroso dos anos 50, mas me lembrei da emoção com que ouvi aqueles versos. De retalho em retalho, terminei o meu trabalho, e parti para outras e malsucedidas esculturas.



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