São Paulo, sexta-feira, 14 de abril de 2000


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Genéricos para Aids, cuidado máximo


O portador do vírus HIV não pode se ver sujeito a um produto não-confiável


DAVID EVERSON UIP

Há vários anos, ter conhecimento do resultado positivo no exame de identificação do vírus HIV era o mesmo que receber uma sentença de morte. Hoje as coisas estão mudando, apesar de ainda nenhum esquema terapêutico existente apresentar competência para erradicar o vírus HIV. Trata-se de uma afirmativa unânime entre os principais pesquisadores do mundo.
Sabe-se também que a combinação de medicamentos reduz a quantidade de vírus mensurável no sangue periférico, melhora a resposta do sistema imune, diminui o número de infecções oportunistas, melhora a qualidade de vida, aumenta a sobrevida do paciente, reduz o número de internações hospitalares e diminui drasticamente os custos com todos os itens anteriores.
Os pacientes brasileiros que utilizam essas combinações ganharam, confiantes na qualidade dos medicamentos utilizados e graças ao competente programa do Ministério da Saúde, que fornece medicamentos gratuitamente a quem tem indicação, maior dignidade e um forte alento em suas vidas.
De outra forma, a aderência aos esquemas terapêuticos rígidos é difícil, mas necessária. Alguns efeitos colaterais são ainda pouco conhecidos e há interações com outros medicamentos e alimentos.
Atualmente se tem conhecimento da descoberta de novos anti-retrovirais mais eficientes, com menos adventos adversos, número menor de comprimidos e horários mais compatíveis. Isso deve ser tão importante quanto a busca de novos alvos ou o encontro de medicamentos que reconstituam o sistema de defesa do paciente.
As opções para os pacientes que apresentam falência terapêutica devem observar alguns parâmetros, como tentar incluir pelo menos duas novas drogas no novo esquema, embora o ideal seja alterar todas. Os princípios de intensificação encontram-se em desenvolvimento, mas não é aceitável adicionar droga(s) a um esquema falido.
A terapêutica com dois inibidores de protease oferece potência, conveniência e durabilidade, podendo ser considerada para todos os pacientes, em especial aqueles com grande quantidade de vírus no sangue ou extensa experiência medicamentosa inicial.
A utilização conjunta de vários medicamentos pode suprimir a replicação viral, embora isso não ocorra em todos os pacientes. Valores como qualidade de vida e possibilidade de tolerância devem ser avaliados.
Desse modo, todo e qualquer paciente não pode correr risco de vida por ingerir medicamentos com qualidade duvidosa ou não eficaz. O compromisso de médicos, Ministério da Saúde, laboratórios farmacêuticos e todos os envolvidos no tratamento da Aids é garantir a qualidade de vida conquistada pelos pacientes e evitar a morte.
É muito sério e oportuno esse debate sobre a qualidade dos medicamentos. Principalmente no momento atual, marcado pela CPI dos Medicamentos e pela Lei dos Genéricos. Em relação aos medicamentos anti-retrovirais para tratamento da Aids, ainda não foi liberado nenhum genérico no país, conforme as especificações da recente lei.
Já os similares estão no mercado nacional há cerca de 30 anos. Eles deveriam ter o mesmo princípio ativo e ser terapeuticamente equivalentes, surtindo o mesmo efeito que o medicamento de marca proporciona. Isso, infelizmente, não acontece com todos os similares. No momento, falta fiscalização nessa área, mas se espera competência das autoridades da saúde.
Junto com o anúncio da entrada de genéricos e com o aumento dos similares no país, principalmente para o tratamento da Aids, deve vir também um importante compromisso: a real garantia da qualidade dos medicamentos já no primeiro lote a ser lançado e também nos sucessivos.
Todos os laboratórios, nacionais ou não, fabricantes de genéricos devem obrigatoriamente comprovar a qualidade de seu produto em relação ao medicamento de referência por meio de teste de bioequivalência (que traça um perfil das características físicas e químicas do candidato a genérico) e biodisponibilidade (que mede os efeitos no organismo, avaliando se o genérico surte o mesmo efeito e atinge a mesma concentração no sangue em tempo igual ao medicamento de referência).
Os testes de bioequivalência e biodisponibilidade revelam a característica do medicamento naquele momento. Não são a garantia de que o laboratório, na produção em série, manterá a fórmula e não reduzirá proporções de substâncias. Só que, no Brasil, a fiscalização das boas práticas de fabricação da indústria farmacêutica, mundialmente conhecidas como GMP (Good Manufacturing Practice), ainda é falha, mas melhorou após a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
Algumas Vigilâncias estaduais, como as de São Paulo e Rio Grande do Sul, também estão se equipando. Mas e no restante do território nacional?
Queremos medicamentos genéricos, nacionais, baratos, mas sobretudo de boa qualidade, eficazes e seguros. Devemos assumir o compromisso de acompanhar e participar ativamente dessas mudanças positivas no cenário nacional. O próprio Ministério Público terá incumbência de zelar pela qualidade de um medicamento anti-Aids. Terá autoridade judicial de exigir exames de bioequivalência e biodisponibilidade.
Afinal, o portador do vírus HIV não pode se ver sujeito a um produto não-confiável. Até mesmo o médico não pode prescrever medicamentos com crédito duvidoso.
Uma das preocupações atuais é quanto aos inibidores de protease. A eficácia deles requer a implementação de um processo contínuo para monitorizar a pureza do composto. Sem isso, poderá ocorrer o desenvolvimento da temida resistência a essa e eventualmente a outras classes de anti-retrovirais.
Temos consciência de que os genéricos com preços acessíveis são muito bem-vindos no Brasil. Chegam com bastante atraso a um país onde a saúde nem sempre é levada a sério, conforme reza nossa Constituição. É importante, porém, que eles cheguem com o compromisso de qualidade ou serão um ônus a mais para os tratamentos.
Todos sabem que os produtos devem gerar confiança em médicos e pacientes. Caso contrário levarão a danos irreversíveis e até à morte. Um genérico sem qualidade é uma afronta à ciência e a toda pesquisa desenvolvida até hoje no mundo.


David Everson Uip, 48, médico infectologista, é professor livre-docente da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).



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