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CARLOS HEITOR CONY
O cão e o gato
RIO DE JANEIRO - Outro dia, não sei se dormi mal, ou se apenas eu não estava de bem com o mundo -o que é
frequente para os meus lados, pois o
mundo não está bem comigo-, senti
saudade da minha máquina de escrever, a primeira, com a qual iniciei,
para horror dos críticos e leitores,
meu ofício de escritor.
É uma velha, velhíssima Remington semiportátil, contemporânea da
era terciária, dos imperadores medas
e persas, das Guerras Púnicas. Comprei outras depois, ganhei uma da
editora que publicava meus livros,
uma Olivetti na qual escrevi uma
crônica que me rendeu um veraneio
no Batalhão da PE, na rua Barão de
Mesquita, onde um capitão me perguntou por que diabo eu insistia em
escrever tanta besteira.
Nos últimos anos, escravizei-me aos
computadores, mais precisamente
aos notebooks, com os quais ando de
lá para cá espremendo o miolo da cabeça para comprar o miolo de pão
que me sustenta -estou usando famosa confissão de Humberto de
Campos, fica por conta dele esse
"miolo de cabeça", que todo mundo
tem, mas eu desconfio do meu caso,
às vezes nem tenho cabeça e, muito
menos, miolo dentro dela.
Como ia dizendo, dormi mal e tive
saudade da velha máquina de escrever, que tinha o mérito ou a desgraça
de me obedecer lealmente, cegamente. Se eu batesse em suas teclas a palavra "obtemperar" (nunca usei esse
verbo, é só um exemplo que estou
dando), as teclas me obedeciam e ela
aparecia escrita no papel.
O computador é temperamental,
ele me corrige a toda hora, tem vida
independente, como um gato, que vive sempre na sua, e não como um cachorro, cuja glória é viver com e para
o dono.
Procurei a máquina, tirei-lhe o pó e
o sono enferrujado em que dormia,
nela estou escrevendo esta crônica. Se
ela saiu ruim e inútil, a culpa não é
dela, é minha mesmo.
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