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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O cão e o gato

RIO DE JANEIRO - Outro dia, não sei se dormi mal, ou se apenas eu não estava de bem com o mundo -o que é frequente para os meus lados, pois o mundo não está bem comigo-, senti saudade da minha máquina de escrever, a primeira, com a qual iniciei, para horror dos críticos e leitores, meu ofício de escritor.
É uma velha, velhíssima Remington semiportátil, contemporânea da era terciária, dos imperadores medas e persas, das Guerras Púnicas. Comprei outras depois, ganhei uma da editora que publicava meus livros, uma Olivetti na qual escrevi uma crônica que me rendeu um veraneio no Batalhão da PE, na rua Barão de Mesquita, onde um capitão me perguntou por que diabo eu insistia em escrever tanta besteira.
Nos últimos anos, escravizei-me aos computadores, mais precisamente aos notebooks, com os quais ando de lá para cá espremendo o miolo da cabeça para comprar o miolo de pão que me sustenta -estou usando famosa confissão de Humberto de Campos, fica por conta dele esse "miolo de cabeça", que todo mundo tem, mas eu desconfio do meu caso, às vezes nem tenho cabeça e, muito menos, miolo dentro dela.
Como ia dizendo, dormi mal e tive saudade da velha máquina de escrever, que tinha o mérito ou a desgraça de me obedecer lealmente, cegamente. Se eu batesse em suas teclas a palavra "obtemperar" (nunca usei esse verbo, é só um exemplo que estou dando), as teclas me obedeciam e ela aparecia escrita no papel.
O computador é temperamental, ele me corrige a toda hora, tem vida independente, como um gato, que vive sempre na sua, e não como um cachorro, cuja glória é viver com e para o dono.
Procurei a máquina, tirei-lhe o pó e o sono enferrujado em que dormia, nela estou escrevendo esta crônica. Se ela saiu ruim e inútil, a culpa não é dela, é minha mesmo.


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