São Paulo, sábado, 14 de outubro de 2000

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CARLOS HEITOR CONY
O homem horizontal

RIO DE JANEIRO - Almocei no hotel onde me hospedaram, na rua Augusta. Fui a uma banca de jornais na Paulista. Num cruzamento, o pé bateu numa protuberância do meio-fio, dei passos desgovernados, bêbado súbito e irreparável. Desabei na calçada.
Tive tempo de proteger a cabeça, o peso do corpo ficou concentrado no ombro direito. Ainda bem. Se tivesse me apoiado nas mãos, teria sido pior -foi o que ouvi mais tarde do ortopedista.
Pior mesmo foi adquirir a perspectiva que um morto teria -se é que os mortos têm direito a qualquer perspectiva. No chão, contemplava o céu estranhamente azul da Paulicéia. E só não contemplei mais porque aparecerem rostos penalizados. Formavam um círculo, o céu ao fundo.
Tudo demorou menos de meio minuto. Ajudaram-me a levantar, perguntaram se estava passando mal, disse que não, tudo bem. Saí do pequeno ajuntamento que se formou em volta.
Não sentia dor alguma, mas imensa, obscena humilhação. O homem vertical, que eu me julgava ser, tivera um momento de verdade. Não foi o meu primeiro tombo. Foi o mais espetacular, no meio de tanta gente.
Bastaram aqueles dois ou três segundos, estatelado numa calçada, o céu ao fundo, rostos alarmados formando um círculo em minha visão derrotada, de homem horizontal.
Não sei se foi bom voltar à verticalidade que me dava direito de ser como os outros, também verticais e apressados, que logo não me deram qualquer importância. No chão, eu era importante? Ou apenas um transtorno na vida urbana, um cara atrapalhando o trânsito na calçada paulista?
Sobrevivi à humilhação. Fui em frente. O homem vertical é postiço, provisório, como as medidas que o governo baixa todos os dias. Definitivo, passado a limpo, é o homem horizontal.


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