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CARLOS HEITOR CONY
O homem horizontal
RIO DE JANEIRO - Almocei no hotel onde me hospedaram, na rua Augusta. Fui a uma banca de jornais na
Paulista. Num cruzamento, o pé bateu numa protuberância do meio-fio,
dei passos desgovernados, bêbado súbito e irreparável. Desabei na calçada.
Tive tempo de proteger a cabeça, o
peso do corpo ficou concentrado no
ombro direito. Ainda bem. Se tivesse
me apoiado nas mãos, teria sido pior
-foi o que ouvi mais tarde do ortopedista.
Pior mesmo foi adquirir a perspectiva que um morto teria -se é que os
mortos têm direito a qualquer perspectiva. No chão, contemplava o céu
estranhamente azul da Paulicéia. E
só não contemplei mais porque aparecerem rostos penalizados. Formavam um círculo, o céu ao fundo.
Tudo demorou menos de meio minuto. Ajudaram-me a levantar, perguntaram se estava passando mal,
disse que não, tudo bem. Saí do pequeno ajuntamento que se formou
em volta.
Não sentia dor alguma, mas imensa, obscena humilhação. O homem
vertical, que eu me julgava ser, tivera
um momento de verdade. Não foi o
meu primeiro tombo. Foi o mais espetacular, no meio de tanta gente.
Bastaram aqueles dois ou três segundos, estatelado numa calçada, o
céu ao fundo, rostos alarmados formando um círculo em minha visão
derrotada, de homem horizontal.
Não sei se foi bom voltar à verticalidade que me dava direito de ser como os outros, também verticais e
apressados, que logo não me deram
qualquer importância. No chão, eu
era importante? Ou apenas um
transtorno na vida urbana, um cara
atrapalhando o trânsito na calçada
paulista?
Sobrevivi à humilhação. Fui em
frente. O homem vertical é postiço,
provisório, como as medidas que o
governo baixa todos os dias. Definitivo, passado a limpo, é o homem horizontal.
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