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São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003

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O VÉU DA POLÊMICA

A polêmica está instalada. A França poderá acatar a recomendação de uma comissão governamental de banir todos os símbolos religiosos de escolas públicas. Embora a medida abarque ícones de todas as religiões, incluindo grandes crucifixos e quipá, o solidéu judaico, ela foi concebida para evitar que garotas muçulmanas utilizem o véu.
A questão é complexa e comporta muitas abordagens. O que parece indiscutível é que a escola pública deve ser laica e republicana. Isso deveria valer tanto para a França como para o Brasil. É inadmissível, por exemplo, que existam símbolos religiosos nas salas de aula. Também parece razoável sustentar que professores, enquanto representantes do Estado, devem evitar utilizar ornamentos religiosos ou mesmo políticos.
Resta saber se essas restrições devem ser estendidas aos alunos. A comissão francesa de 20 notáveis presidida pelo ex-ministro da Educação Bernard Stasi trabalhou por seis meses e fez 120 audiências públicas para concluir que sim. De acordo com Stasi, a integração, mesmo que com alguma dose de violência, é necessária para preservar os valores republicanos. Há aí uma referência indireta ao extremismo islâmico.
Também se pode concordar com Stasi em relação ao objetivo de integrar todos os cidadãos franceses, muçulmanos e não-muçulmanos, ao secularismo laico e republicano. Esse de fato parece ser o melhor remédio contra ameaças extremistas.
A pergunta que fica é se a proibição do véu e de outros símbolos não constitui uma violência desmedida. Transpondo o problema para o Brasil, a medida proposta pela comissão equivaleria a forçar alunas de determinadas correntes evangélicas a utilizar calças no lugar de vestidos ou manter seus cabelos curtos, algo que elas se recusam a fazer -sem com isso infringir nenhuma norma legal ou de convívio social pacífico.
Mesmo considerando plausível a hipótese de que muitas alunas muçulmanas francesas só usem o véu por imposição familiar, parece precipitado afirmar que esse adereço esteja totalmente desprovido de valor cultural. Enfim, não é impossível que muitas alunas desejem vesti-lo e se identifiquem positivamente com suas origens islâmicas.
A sensação que fica é a de que, para a comissão, islamismo é sinônimo de extremismo e deve, portanto, ser extirpado. Subjaz aí uma visão problemática de democracia, na qual a tolerância e o respeito à diversidade se tornam valores menos importantes. Existe até mesmo o risco de a proposta produzir efeitos inversos aos desejados. Talvez privar muçulmanos de demonstrar sua identidade cultural nos espaços públicos os leve a buscá-la em grupos que atuem à sombra do Estado, com maiores chances de pregações radicais.
A escola pública deve, sem dúvida, ser laica, e a integração secular é um valor a perseguir. Só que essas metas não podem ser buscadas com o sacrifício da mais elementar das liberdades individuais, que é a de possuir uma individualidade e exprimi-la de forma pacífica.


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