UOL




São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

O livro no tempo da mundialização

BETTY MILAN

Pelas trocas que gera, a mundialização tem um efeito benéfico. Por tratar os bens culturais como os outros todos, acaba invariavelmente impondo a cultura da economia mais forte.
O conceito de diversidade cultural surgiu para se opor a esse efeito e deu origem a uma política que não nega o mercado, porém nele introduz os bens culturais com "discernimento". Noutras palavras, essa política protege o gene da criação artística e intelectual.
Os primeiros que a estruturaram foram os canadenses, criando, em 1998, uma rede para reunir os profissionais de todos os setores da cultura -teatro, cinema, televisão, música e literatura. Três anos mais tarde, a experiência se abriu para os profissionais estrangeiros e, hoje, a rede existe também na Argentina, Austrália, Chile, Coréia, França, México e Nova Zelândia.
Em fevereiro de 2003, 300 organizações profissionais, oriundas de 35 países, reuniram-se em Paris para reafirmar o ideário da diversidade cultural e elaborar um tratado que a reconheça como o fundamento jurídico do direito de cada nação a desenvolver livremente a sua política cultural. Trata-se de uma meta ambiciosa de que o futuro do livro depende, porque sem a diversidade ele não existe. "Isso vale para a criação, porque qualquer um pode se tornar autor, e a escrita não é apanágio de ninguém. Vale para a edição, que conta com a aparição contínua de novas editoras, ainda que a concentração tenha se tornado um dado fundamental da economia editorial. Vale, enfim, para a produção do livro. Assim, em 2001, menos de 700 filmes foram produzidos na Europa, enquanto mais de 400 mil obras novas foram editadas." (Jean Sarzana, na Conferência Européia, em Atenas, 2003).
Sendo um símbolo da diversidade, o livro é um suporte da nacionalidade. Pede um editor que está em via de desaparecer. Ou seja, que lê o manuscrito, por acreditar que precisamos menos de consumidores do que de cidadãos. Que defende a literatura, por acreditar que através dela é possível resistir aos efeitos descaracterizadores da mundialização. Que não publica em excesso -por buscar e promover a originalidade.


Traduzir a nossa literatura nas línguas cuja escrita se distancia da oralidade é um grande desafio


Tal editor sabe perfeitamente que um grande livro é uma grande oportunidade editorial, além de ser instrumento da afirmação de um autor e de um povo. Assim, ele se recusa a publicar o não-livro, evita a "infoxicação" (intoxicação pelo excesso de informação). Valoriza a qualidade, e não a quantidade, e sabe dar à obra o tempo de que ela precisa para se impor. Procura o texto que se vende sempre, e não o que se vende logo. Apoiar esse profissional é uma das metas de qualquer política do livro consequente.
Tão importante quanto esse bom editor é o bom tradutor, que faz um mundo poliglota vigorar, "atravessa as fronteiras sem anexar nada" (Eric Orsenna). Para apoiá-lo, não basta subsidiar traduções, é necessário dar a ele a possibilidade de conhecer verdadeiramente a língua a partir da qual traduz e se deixar tomar pelo ritmo, que o português escrito do Brasil, aliás, privilegia. Porque do Norte ao Sul, de Leste a Oeste, é a música que nos transporta, a África que se impõe. Nós talvez sejamos mais "amefricanos" que latino-americanos.
Traduzir a nossa literatura nas línguas cuja escrita se distancia da oralidade -caso do francês- é um grande desafio. Sem grandes tradutores, nós ficaremos condenados ao nacionalismo literário, "menos nocivo do que o realismo socialista, mas como ele igualmente estéril" (Octavio Paz). A difusão da literatura brasileira depende sobretudo do tradutor literário. Sua vocação é indispensável para que o espírito da nossa cultura se difunda noutras partes do planeta.
E quem diz tradutor, também diz auxilio à promoção do livro no exterior. Uma década bastaria para que a nossa literatura se impusesse fora do Brasil. Prova disso é a história da literatura portuguesa na França, que a cada dia se torna mais pessoana.

Betty Milan, escritora e psicanalista, é autora de "O Clarão" e "A Paixão de Lia", entre outros livros.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Ennio Candotti: Viva a SBPC viva

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.