São Paulo, sábado, 15 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O número de vereadores no país deve ser reduzido?

NÃO

Os tribunais e a democracia

NEY SUASSUNA

A Constituição brasileira adota, como princípio, a autonomia municipal. No tocante à composição dos Parlamentos locais, estabelece que, dentro das balizas populacionais que define no inciso IV de seu art. 29, os municípios são autônomos para decidir quantos vereadores interessa a cada um ter. A referência constitucional à proporcionalidade que deve haver entre a população municipal e o número de seus representantes realiza-se justamente pela obrigação que têm os municípios de não ultrapassarem os limites máximo e mínimo de vereadores correspondentes à sua faixa populacional. Esse entendimento vinha constituindo jurisprudência pacífica nos tribunais superiores até meados dos anos 90, como provam inúmeros julgados.
Desde então, muitos municípios fixaram livremente o número dos representantes de sua população, sempre dentro dos limites estabelecidos pela Constituição, o que garantia a desejada combinação entre proporcionalidade e autonomia. A partir da segunda metade da década de 90, os tribunais passaram a interpretar diferentemente a Constituição. Essa virada culminou com a adoção, em abril de 2004, pelo TSE, de resolução que fixa aritmeticamente o número de vereadores que cada município brasileiro deve ter.
Por que essa nova interpretação da expressão "proporcionalidade" no texto constitucional? As razões levam-nos de volta àquele "Brasil profundo", das estruturas sociais injustas, ao qual a "Constituição cidadã" tanto deu combate. Esgotados os interesses dos grandes pólos urbanos, a jurisprudência constitucional começou a mudar na direção de uma interpretação centralista da idéia de "proporcionalidade".
E os argumentos dessa "virada" jurisprudencial são os do velho Brasil dos tecnocratas: a sociedade política brasileira é, no plano local, irracional e patrimonialista, e os municípios, portanto, precisam sempre ser salvos de si mesmos pela racionalidade redentora do governo central. Esse é um preconceito grave e errôneo, que o legislador constituinte de 1988 identificou como uma das causas da iniqüidade entre nós, dado que tal modo de pensar eterniza as populações locais na tutela que as torna subalternas.
Observe-se que os tribunais, em nome da prudência econômica, atacam diretamente a autonomia política municipal, esquecendo-se de que já existem diversas normas que regulam os gastos municipais com seus parlamentos. Se fosse constatada a insuficiência dessas normas, poder-se-ia aprimorá-las, torná-las ainda mais restritivas. Mas esse caminho, tão óbvio e respeitante do princípio constitucional da autonomia local, não é sequer trazido à baila, pois o botim do preconceito é outro: são as liberdades políticas.
A sentença do STF no caso de Mira Estrela, revertendo definitivamente a jurisprudência constitucional do ponto de vista autonomista para o centralista, e a resolução do TSE, que usurpa poderes constituintes e virtualmente reescreve a Carta Magna, são precedentes perigosíssimos, porque a época de crise convida a soluções centralistas e a urgência dos problemas parece sugerir que se prescinda da democracia e que se deixe os tecnocratas, com sua sabedoria "aritmética", indicarem aos municípios quais os seus melhores caminhos.
Apesar da força dessas aparências, a observação de nossa estrutura social mostra-nos que o contrário é que é verdadeiro: nada temos feito em nossa história senão "crescer o bolo" (que já é um dos maiores do mundo); precisamos, sim, é de mais democracia política para sua justa distribuição.
A engenharia constitucional que estamos em via de perder era brilhante: combinava o insubstituível conhecimento de causa local com a desejável dose de uniformidade que deve existir entre as partes de uma nação. Se a sociedade local se tornasse mais densa e complexa, ainda que não mais populosa, ela poderia aumentar seu espaço de expressão política, funcionando melhor, fazendo com que mais setores sociais tivessem voz. O modelo constitucional que os tribunais superiores parecem ter revogado valia-se, portanto, da democracia para chegar à justiça social. Qualquer um com noções básicas de economia política sabe que esse é o melhor caminho. Mas os donos da racionalidade, nostálgicos da tecnocracia, são levados, por seus preconceitos, a pensar diferentemente: o que os municípios precisariam é de mais crescimento econômico cego, sem política para atrapalhar as evoluções da "racionalidade econômica".
Nas crises sociais e econômicas, urge não ceder à tentação das soluções aparentemente fáceis. A população, acossada por dificuldades, pode ser levada a aceitar a miragem de um caminho mais curto para uma vida decente. Mas essa vida está reservada, exclusivamente, aos que rejeitam a miragem economicista e tecnocrática e aceitam trilhar a difícil senda da democracia política plena. É esse o desafio da cidadania brasileira para os próximos anos.


Ney Suassuna, 62, economista e empresário, é senador pelo PMDB-PB.


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SIM
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