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TENDÊNCIAS/DEBATES
O número de vereadores no país deve ser reduzido?
NÃO
Os tribunais e a democracia
NEY SUASSUNA
A Constituição brasileira adota,
como princípio, a autonomia municipal. No tocante à composição dos
Parlamentos locais, estabelece que, dentro das balizas populacionais que define
no inciso IV de seu art. 29, os municípios são autônomos para decidir quantos vereadores interessa a cada um ter.
A referência constitucional à proporcionalidade que deve haver entre a população municipal e o número de seus representantes realiza-se justamente pela
obrigação que têm os municípios de
não ultrapassarem os limites máximo e
mínimo de vereadores correspondentes
à sua faixa populacional. Esse entendimento vinha constituindo jurisprudência pacífica nos tribunais superiores até
meados dos anos 90, como provam inúmeros julgados.
Desde então, muitos municípios fixaram livremente o número dos representantes de sua população, sempre dentro
dos limites estabelecidos pela Constituição, o que garantia a desejada combinação entre proporcionalidade e autonomia. A partir da segunda metade da década de 90, os tribunais passaram a interpretar diferentemente a Constituição. Essa virada culminou com a adoção, em abril de 2004, pelo TSE, de resolução que fixa aritmeticamente o número de vereadores que cada município
brasileiro deve ter.
Por que essa nova interpretação da expressão "proporcionalidade" no texto
constitucional? As razões levam-nos de
volta àquele "Brasil profundo", das estruturas sociais injustas, ao qual a
"Constituição cidadã" tanto deu combate. Esgotados os interesses dos grandes pólos urbanos, a jurisprudência
constitucional começou a mudar na direção de uma interpretação centralista
da idéia de "proporcionalidade".
E os argumentos dessa "virada" jurisprudencial são os do velho Brasil dos
tecnocratas: a sociedade política brasileira é, no plano local, irracional e patrimonialista, e os municípios, portanto,
precisam sempre ser salvos de si mesmos pela racionalidade redentora do
governo central. Esse é um preconceito
grave e errôneo, que o legislador constituinte de 1988 identificou como uma
das causas da iniqüidade entre nós, dado que tal modo de pensar eterniza as
populações locais na tutela que as torna
subalternas.
Observe-se que os tribunais, em nome
da prudência econômica, atacam diretamente a autonomia política municipal, esquecendo-se de que já existem diversas normas que regulam os gastos
municipais com seus parlamentos. Se
fosse constatada a insuficiência dessas
normas, poder-se-ia aprimorá-las, torná-las ainda mais restritivas. Mas esse
caminho, tão óbvio e respeitante do
princípio constitucional da autonomia
local, não é sequer trazido à baila, pois o
botim do preconceito é outro: são as liberdades políticas.
A sentença do STF no caso de Mira Estrela, revertendo definitivamente a jurisprudência constitucional do ponto
de vista autonomista para o centralista,
e a resolução do TSE, que usurpa poderes constituintes e virtualmente reescreve a Carta Magna, são precedentes perigosíssimos, porque a época de crise
convida a soluções centralistas e a urgência dos problemas parece sugerir
que se prescinda da democracia e que se
deixe os tecnocratas, com sua sabedoria
"aritmética", indicarem aos municípios
quais os seus melhores caminhos.
Apesar da força dessas aparências, a
observação de nossa estrutura social
mostra-nos que o contrário é que é verdadeiro: nada temos feito em nossa história senão "crescer o bolo" (que já é um
dos maiores do mundo); precisamos,
sim, é de mais democracia política para
sua justa distribuição.
A engenharia constitucional que estamos em via de perder era brilhante:
combinava o insubstituível conhecimento de causa local com a desejável
dose de uniformidade que deve existir
entre as partes de uma nação. Se a sociedade local se tornasse mais densa e
complexa, ainda que não mais populosa, ela poderia aumentar seu espaço de
expressão política, funcionando melhor, fazendo com que mais setores sociais tivessem voz. O modelo constitucional que os tribunais superiores parecem ter revogado valia-se, portanto, da
democracia para chegar à justiça social.
Qualquer um com noções básicas de
economia política sabe que esse é o melhor caminho. Mas os donos da racionalidade, nostálgicos da tecnocracia, são
levados, por seus preconceitos, a pensar
diferentemente: o que os municípios
precisariam é de mais crescimento econômico cego, sem política para atrapalhar as evoluções da "racionalidade econômica".
Nas crises sociais e econômicas, urge
não ceder à tentação das soluções aparentemente fáceis. A população, acossada por dificuldades, pode ser levada a
aceitar a miragem de um caminho mais
curto para uma vida decente. Mas essa
vida está reservada, exclusivamente, aos
que rejeitam a miragem economicista e
tecnocrática e aceitam trilhar a difícil
senda da democracia política plena. É
esse o desafio da cidadania brasileira
para os próximos anos.
Ney Suassuna, 62, economista e empresário, é
senador pelo PMDB-PB.
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