São Paulo, quinta-feira, 16 de março de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cinco anos sem Covas

RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA

O transcurso do quinto ano da triste e emocionante despedida do governador Mário Covas, ocorrida em 6 de março de 2001, me fez lembrar de diálogo entre dois personagens do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898-1956) na peça "Vida de Galileu". Um deles afirma enfaticamente: "Infeliz do país que não tem heróis"; e o outro rebate: "Não, amigo, infeliz do país que precisa de heróis". Os intermitentes casos de corrupção nos cinco séculos de história e os problemas que ainda se verificam no cotidiano nacional demonstram que o Brasil -apesar de todos os esforços e avanços hoje verificados na ética e na valorização da cidadania-, lamentavelmente, ainda se enquadra no segundo caso.


É mais do que necessário perpetuar, conferir visibilidade e multiplicar o exemplo legado pelo combativo governador


Portanto, é mais do que necessário perpetuar, conferir visibilidade global e multiplicar o exemplo legado pelo combativo governador.
O estoicismo com que exercitou a política e os cargos públicos deve estabelecer parâmetros de conduta para o presente e o futuro. A capacidade de montar uma verdadeira escola de governo, com fiéis seguidores em termos de parâmetros éticos, é fator de extrema importância para a nação. Afinal, seria muita ingenuidade supor que alguma nação poderá ter pleno êxito em suas metas de desenvolvimento, em uma era cujo principal ícone é a consciência ética, sem que o princípio fundamental da ética esteja fortemente arraigado em todas as instituições.
À humanidade deste século 21 não interessam apenas as promessas de facilidades, progresso econômico, tecnologia de ponta e conforto contidas no ideário da sociedade pós-industrial. Ser ético, correto e honesto é essencial.
A ausência de ética na política e todas as suas conseqüências são ainda mais danosas quando a vítima é um país em desenvolvimento -como o nosso-, em que há muito a fazer para garantir o crescimento sustentado da economia e a necessária redução dos problemas sociais. Quando se observa nos poderes constituídos a prevalência de interesses pessoais, corporativos ou de grupos acima das metas de toda a sociedade, se macula a democracia e se aprofundam as desigualdades. Quando se assiste ao deplorável espetáculo de absolvições de parlamentares contra a evidência das provas colhidas no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados...
Essas constatações, aliás, não são novas. Rousseau já observava: "Concebo na espécie humana duas formas de desigualdade: uma que chamarei de natural (...) e outra que se pode chamar de moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção e porque é estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo consentimento dos homens".
Pois bem, na democracia moderna, quando recebe o poder pela força do voto, o político deve exercê-lo em nome da maioria, ou seja, pautando-se por inabalável consciência ética. É necessário resistir às tentações inerentes ao poder, repudiar, denunciar e punir os corruptores para evitar a repetição de vícios milenares denunciados com muita clareza no livro "Arqueologia da Ética", do psiquiatra Carlos Roberto Aricó: "Desde tempos históricos, é freqüente observar-se que os chefes políticos se transformam em proprietários do Estado (...). É oportuno considerarmos que as leis objetivam domesticar as paixões. Desejos, talentos e acaso, aliados a pessoas ambiciosas e covardes, foram os elementos básicos na desigualdade entre os homens".
Como o mundo está muito aquém de um ideal harmonioso de conduta adequada, cabe à consciência cívica dos cidadãos depurar, no exercício do voto, o universo dos cargos eletivos. A consciência é filha da informação, cultura e educação, pode-se argumentar. É verdade. Exatamente por isso, é grande a responsabilidade que cabe aos formadores de opinião. Professores, intelectuais, jornalistas e todos os profissionais com acesso aos meios de comunicação, sejam elas dirigidas a públicos específicos de uma organização ou ao conjunto da sociedade, devem partir do pressuposto da ética nas relações sociais, econômicas, trabalhistas e políticas.
Educar é preciso. Difundir esse conceito representa a edificação de uma sólida ponte de acesso a um futuro mais feliz. Futuro em que os brasileiros não mais precisarão socorrer-se da estóica memória de heróis como Covas para encontrar sua identidade como povo e assegurar um mínimo de auto-estima. Assim, mais do que transformar em lágrimas de saudade as águas de março, a nação deve utilizá-las com sabedoria, irrigando com elas a semente da ética.

Ruy Martins Altenfelder Silva, 66, advogado, é presidente do Centro de Estudos Avançados e Estratégicos do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo). Foi secretário da Ciência, Tecnologia, Desenvolvimento Econômico e Turismo do Estado de São Paulo (2001-2002).
@ - ruyaltenfelder@uol.com.br



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