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CARLOS HEITOR CONY
Um travesti perdido na noite
RIO DE JANEIRO - Noite dessas, após visitar parente enfermo, fui avisado
por um dos porteiros do prédio que os
traficantes haviam fechado algumas
ruas e estavam incendiando os ônibus. A TV naquele momento dava
maiores informações.
Não quis saber das informações,
considerando-me devidamente informado. Recusei perder tempo diante do aparelho que o porteiro tinha
em sua mesa. Tratei de vir para casa
e de chegar a ela, se possível, sem
mortos nem feridos.
Passei por avenidas desertas, calçadas vazias, vi um ônibus fazendo a
curva no Jardim de Alá e um travesti
de peruca loura e meias de arrastão,
que esperava improvável cliente na
pista da Vieira Souto.
No mais, era uma cidade-fantasma, a minha. E, como chuviscava um
pouco, embaciando as luzes e os edifícios, associei-a a Bagdá quando,
iluminada e calma, esperava, nos
primeiros momentos da guerra, os
mísseis inteligentes que norte-americanos e ingleses despejariam nela.
Ao pegar a Lagoa, senti um "frío en
el alma", como naquele bolero que o
Gregorio Barrios cantava nos anos
50. Os restaurantes da orla estavam
igualmente desertos, luzes apagadas,
um poeta parnasiano diria que não
havia "viv'alma" em toda a cidade,
exceto eu e minha modesta viatura,
ambos assombrados pelo vazio. Seria
o caso de perguntar como Manuel
Bandeira naquele poema: "Onde estão todos eles?"."
Em casa, ao ligar a TV, soube que
tudo não passara de um ensaio geral
para os feriados da Semana Santa.
Desliguei a TV, fui à varanda ver a
noite na Lagoa. Nenhum carro passando. O Cristo encoberto por aquela
nuvenzinha que ele incendeia com a
luz que sua estátua reflete.
Pensei no primo doente e orei por
ele e por mim. Depois, pensei no travesti solitário que esperava o cliente
que não se arriscou naquela noite.
Orei por ele também.
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