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São Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Direitos humanos, conquista do homem

HÉLIO BICUDO

Creio que os leitores da Folha tenham recebido a coluna "Direitos desumanos", de autoria do reputado jornalista Janio de Freitas, estampada na página A5, dia 6 de abril último, pelo menos com surpresa, pois estão acostumados a suas palavras criteriosas e de bom senso nos comentários que faz sobre atos e fatos ocorrentes em nosso país ou no exterior.
Realmente, não se pode atribuir a criação dos direitos humanos à esquerda. Vale a pena recordar que foram as últimas guerras européias do século 19 e os conflitos mundiais de 1914-18 e 1939-45 que despertaram a consciência mundial para o problema dos direitos fundamentais da pessoa humana.
Das normas do direito humanitário, também chamado direito da guerra, quando se buscou a proteção de pessoas envolvidas em conflitos armados, passou-se, depois da segunda conflagração mundial e mesmo durante o seu desenrolar, a considerar os chamados direitos civis e políticos. A Carta do Atlântico foi, nessa linha, importante passo. Segundo uma de suas cláusulas, assegurava-se à pessoa o direito de não ter medo da polícia.
Passou-se, terminada a guerra, à elaboração daquela que é a atual Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 e em cujo preâmbulo está escrito que devemos todos, indivíduos e comunidades, nos empenhar para que os direitos nela inscritos se tornem uma realidade, mediante a adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional.
Os direitos contemplados na Declaração Universal referem-se às pessoas, mas as convenções e protocolos que se lhes seguiram impõem obrigações aos Estados, a fim de que esses direitos sejam promovidos e respeitados.
Ora, como se vê, não foi a esquerda que despertou maior reflexão sobre os direitos inalienáveis. Poderá ter influído para esse desiderato, mas a enunciação desses direitos e sua proteção são o resultado de uma vontade maior, da grande maioria dos Estados que firmaram os tratados decorrentes e, em grande parte, ratificaram-nos. Não cabe, assim, atribuir à esquerda a criação dos direitos humanos, muito embora seus pensadores tivessem contribuído para a sua descrição e guarda.


Não são penas pesadas e seu cumprimento cruel que podem ser apontados como fator de diminuição da criminalidade


No mesmo sentido, as Constituições dos Estados livres, inclusive a brasileira, não poderiam olvidar tudo aquilo que a consciência mundial construíra para uma nova concepção de democracia, em cuja essência estão os direitos humanos.
Não são, portanto, conturbações que ocorrem há alguns anos a esta parte e que são fruto, na maioria das vezes, de omissões na condução do Estado que devam justificar mudanças de rumo no que concerne à proteção dos direitos da pessoa. Um indivíduo que cometeu um crime deve ser julgado segundo o devido processo legal e, se condenado, sujeito a um sistema que objetive sua ressocialização. Quem conhece a realidade das prisões brasileiras há de concluir que o que está acontecendo se deve à corrupção e à violência que ali fazem praça; isso porque nos perdemos no tempo e nos deixamos ficar nas concepções prisionais do século 19.
Ora, se um preso usa um telefone celular, se se serve das visitas para atuar externamente, tal não se deve ao princípio da progressividade das penas e o respeito pelos direitos do preso, mundialmente reconhecidos, mas pelo tráfico que é a tônica no sistema carcerário brasileiro. De que vale determinar o isolamento de um criminoso por um ano, se ele vai contar com a corrupção do pessoal penitenciário para permanecer em contato com o mundo exterior?
Sem dúvida, temos todos o direito de andar nas ruas, tomar uma condução, ir a um teatro, morar em nossas casas sem maior risco. Mas não podemos esquecer que, ao nosso lado, residem a miséria, a fome e o desemprego a inspirar ações violentas decorrentes da própria violência da situação em que se encontram os seus sujeitos.
E, ademais, não são penas pesadas e seu cumprimento cruel que podem ser apontados como fator de diminuição da criminalidade. O sequestro, considerado crime hediondo, punido com altas penas, de cumprimento obrigatório, não diminuiu de incidência com essa qualificação. Ao contrário, ela aumentou. Na verdade, para atingirmos um mínimo de segurança, precisamos investir naquilo em que nunca se investiu com seriedade: a reforma dos aparelhos policial e judicial e, como consequência, no próprio sistema penal.
Fora daí, é fazermos coro contra direitos que nasceram com a pessoa humana, mas que só se atribuem às minorias privilegiadas.

Hélio Bicudo, 80, advogado e jornalista, é vice-prefeito do município de São Paulo e presidente da CMDH-SP. Foi deputado federal pelo PT-SP (1990-94 e 1995-98) e presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos).


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