São Paulo, domingo, 16 de junho de 2002

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As universidades e o desenvolvimento

ISAIAS RAW


É a universidade que, associando pesquisa com pós-graduação, produz a elite técnico-científica do país

Já pelo título, o artigo de Gilberto Dimenstein "O mito da USP está chegando ao fim?" (26/5) é uma provocação.
Qual é o papel de dezenas de escolas privadas disfarçadas em faculdades e universidades para o desenvolvimento nacional? Argumentariam alguns que as melhores universidades norte-americanas são privadas. O erro começa pela classificação dessas universidades, que têm estrutura jurídica privada, mas não são uma máquina de lucro, e que mantém o altíssimo padrão do binômio desenvolvimento científico/pós-graduação com enormes recursos públicos -por exemplo, da National Science Foundation, do National Institute of Health e até das Forças Armadas.
O desenvolvimento nacional decorre da pesquisa básica, transformada pelos próprios pesquisadores e, mais frequentemente, por membros da empresa privada em tecnologia. Medir a contribuição para o desenvolvimento pelo número de patentes é somar um processo burocrático que registra numerosos avanços que jamais levarão a produto, empregos e recursos.
As patentes que mais se aproximam de produto, emprego e retorno financeiro são as das empresas privadas, baseadas nas pesquisas de universidades como a USP e financiadas com recursos que, em parte, vêm do poder público (como é o caso das indústrias farmacêuticas internacionais). A maioria dos conhecimentos de alto valor é simplesmente mantido em segredo.
A universidade pública é um modelo que vem evoluindo e tem um papel fundamental no desenvolvimento nacional. É a universidade que, associando pesquisa com pós-graduação, produz a elite técnico-científica do país. Dissociados, os dois morrem. É essa minha observação, após quase duas décadas, depois de ter migrado da USP, via Universidades do Ivy Leage, para o Butantan.
O conceito de institutos de pesquisa dissociados da pós-graduação e com um quadro estável promovido basicamente por antiguidade não levou todos esses institutos reunidos a alcançarem a contribuição científica da USP, ainda que com importante contribuição para o país.
A interação USP-Butantan permitiu o aproveitamento de mais de uma dezena de professores aposentados, que fertilizou o instituto, abrindo suas portas, por meio da Universidade de São Paulo, para a pós-graduação. A participação de pesquisadores básicos no Butantan e na Fiocruz, ainda que geralmente alheios às prioridades do sistema nacional de saúde, permitiu que estas duas instituições produzissem 75% de todas as vacinas de que o Brasil necessita. Mais de uma dezena de institutos que produziam soros e vacinas, sem pesquisa básica, já morreram ou estão moribundos. O mesmo ocorre no resto do mundo.
O Brasil, para controlar más escolas privadas que diplomam quase ignorantes, retroagiu á época da ditadura de Vargas, numa combinação de regulamentos, leis, currículos e exames uniformes. Está impedindo a USP e outras universidades de alto nível de reinventarem as estrutura dos seus cursos, inovando particularmente a formação em áreas técnico-científicas.
Uma sociedade não oferece apenas empregos nas áreas tecnológicas. Precisa de professores de escolas primárias, caixas de banco, burocratas que não pensam e, certamente, de jornalistas, artistas e escritores. Para estes últimos, a formação deve permitir a maior liberdade e mesmo ser informal. Para os demais, basta um curso adequado, que as escolas privadas podem oferecer a um custo mais baixo do que as universidades de terceiro nível e até, em parte, pelo ensino a distância inteligente, criado pela Open University (pública) inglesa.
Um grande número de pessoas terá que possuir uma formação básica para a vida moderna (não mais precisam saber tabuada, mas devem saber quando multiplicam ou dividem; não precisam saber se uma palavra é com dois "s" ou "ç", mas devem saber usar o computador que autocorrige) e muitos outros, para profissões como construção e outras que eram desempenhadas pelas escolas técnicas e liceus de artes e ofícios.
Transformar estes cursos em cursos superiores, exigindo o formalismo de créditos, é prolongar os cursos (eliminando os que não podem pagar ou ficar sem ganhar) e sugar os magros recursos que a sociedade tem para investir nas profissões mais complexas.


Isaias Raw, 75, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP e presidente da Fundação Butantan. Foi diretor do Instituto Butantan (1991-97) e professor visitante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (1971-73) e da Universidade Harvard (1973-74).


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