São Paulo, terça-feira, 17 de junho de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Jamelão

RIO DE JANEIRO - José Bispo do Santos, que é Jamelão para todos os efeitos, declara-se na prorrogação, diz que está no lucro. Apesar disso, reclama que a Mangueira quer aposentá-lo como puxador de samba, ele que continua sendo o maior de todos, consenso e referência das escolas de samba.
Jamelão também reclama quando o classificam como "puxador" de samba. Ele se define como intérprete de samba-enredo, mas é bem mais do que isso. Assisti, há tempos, a um programa especial sobre ele. Apesar de malfeito, fiquei, como sempre, comovido com a sua voz, voz arrancada de dentro dele, caixa de ressonância da dor, do ciúme, da distância.
Jamelão parece autor das músicas que canta, embora poucas sejam realmente de sua autoria, como o clássico "Fechei a Porta". Mas quem garante que seus dois maiores sucessos, "Folha Morta", de Ary Barroso, e "Matriz e Filial", de Lúcio Cardim, não são dele?
Sua interpretação é tão sincera, tão dolorosa em alguns momentos, que as duas canções passam a ser dele, metabolizadas pela sua voz, pelo seu jeito de dizer a letra, de ir do grave ao agudo, até mesmo desafinando um pouco, mas na hora certa de desafinar.
Um de seus sonhos, parece que ainda não realizado, é gravar um disco só com músicas de Lúcio Cardim, que se tornou vítima preferencial do próprio Jamelão -tudo o que ele fez acabou pertencendo mais ao intérprete do que ao autor.
É o caso daquele "quem sou eu?" que começa o "Matriz e Filial". O "eu" em tom grave é Jamelão puro, é só dele, ninguém mais tem o direito de se proclamar "Eu". Com a voz arrancada das entranhas da terra, de um mundo que só ele viveu. (Esta crônica foi publicada em 12.02.05)


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