UOL




São Paulo, sexta-feira, 17 de outubro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Família e identidade brasileiras

FRANCESCO SCAVOLINI

"A pátria é a família amplificada. Multiplicai a família e tereis a pátria." Esta frase muito significativa de Rui Barbosa constitui uma mensagem extremamente atual para a sociedade brasileira. Com efeito, os imensos problemas deste maravilhoso país que é o Brasil provêm em grande parte da grave crise pela qual está passando a instituição familiar.
Essa crise deriva certamente das condições infra-humanas de moradia, de trabalho, de alimentação, de saúde, de instrução e de higiene em que vivem milhões de pessoas no campo e nas periferias das cidades, com a lamentável consequência de um elevado número de menores abandonados e marginalizados. Contudo é necessário não esquecer que, na raiz de tudo isso, está a profunda crise de identidade moral na qual se encontra a família brasileira.
É praticamente impossível, no Brasil, falar sobre identidade sem falar também dos valores cristãos que contribuíram profundamente na construção da cultura e da história do povo brasileiro; uma história que, apesar de grandes sofrimentos, tem mostrado ao mundo que é possível a convivência pacífica entre culturas, raças e povos diferentes.
Infelizmente, nos últimos anos vários fatores têm contribuído para enfraquecer a identidade da família brasileira. É necessário lembrar especialmente as agressões de certos meios de comunicação social, uma publicidade permissiva, a difusão do conceito de uso descartável da sexualidade. Claro que, em alguns casos, os cristãos também devem rezar o mea culpa -por exemplo, pela falta de um ensino moral e de uma presença realmente cristãos no mundo da cultura, nas universidades (por vezes até católicas), nos meios de comunicação.
Como se tudo isso não bastasse, eis que os legisladores introduziram na ordem legal brasileira o divórcio e, mais recentemente, o concubinato, com o resultado da triste sequela de inúmeras separações, de que são sempre vítimas inocentes os filhos, muitos dos quais se tornando violentos e incapazes de conviver pacificamente na sociedade.
É importante ressaltar que a questão da família está hoje em primeiro lugar no ranking das preocupações em vários países, especialmente naqueles que há mais tempo legalizaram o divórcio. Nos EUA, por exemplo, as três autoras do recém-publicado "The Unexpected Legacy of Divorce" ("A Herança Inesperada do Divórcio") -livro em que analisam pesquisa que fizeram, ao longo de 25 anos, com filhos e filhas de divorciados- demonstram que, para as crianças, o divórcio não é uma crise passageira, mas leva consequências para a vida adulta. Salvo casos de violência explícita, afirmam as autoras, as crianças são mais felizes numa família que unida, mesmo que nela aconteçam, às vezes, algumas brigas.



Infelizmente, nos últimos anos vários fatores têm contribuído para enfraquecer a identidade da família brasileira

Impressionam também os dados do último livro da psicóloga californiana Judith Wallerstein, "Law and Divorce" ("Lei e Divórcio"), que tem fama de ser a mais importante investigadora em tema de divórcio e suas consequências, até porque vem acompanhando desde 1971 numerosos casos de filhos de divorciados (de famílias brancas californianas de classe média).
Os dados da pesquisadora mostram que 25% das crianças não terminou o colegial (contra 10% de filhos "normais"), 60% precisaram de tratamento psicológico (contra 30%), 50% tiveram problemas com álcool e drogas antes dos 15 anos, 65% têm um relacionamento conflitivo com o pai. Apesar de a maioria desses filhos de divorciados estar com mais de 30 anos de idade hoje, apenas 30% deles se casaram e 50% já se divorciaram. Diante de tudo isso, o "San Francisco Chronicle" (jornal de uma das cidades americanas consideradas mais "progressistas") teve de admitir que "seus conceitos [de Judith Wallerstein] estão destinados a reabrir o debate sobre a família em nosso país".
E o Brasil pode ficar afastado desse debate sobre a família? Claro que não!
Existem, evidentemente, casos de matrimônios formalmente celebrados mas que de fato são nulos por vício de consentimento (por exemplo, quando a moça é "obrigada" a casar porque ficou grávida), casos esses que são previstos tanto no Código Canônico (da igreja) como no Código Civil (do Estado). Todavia esses casos de nulidade matrimonial, que podem ser resolvidos através de uma sentença judicial, não deveriam ter sido a desculpa para introduzir na ordem legal o divórcio.
As consequências devastadoras da crise da instituição familiar para toda a sociedade deveriam fazer com que nós todos (de maneira especial os detentores do poder público) parássemos um pouco e meditássemos, para que cada um, dentro de suas possibilidades de atuação, criasse condições morais, econômicas e sociais que garantissem a dignidade da vida humana e da família. Essa obrigação moral e jurídica vale especialmente para todos aqueles que se dizem cristãos.
Realmente são adequadas para o Brasil as belíssimas palavras de Dostoiévski citadas na recente entrevista de Eduardo Giannetti à Folha (Pág. A12, 6/10): "Se um grande povo não acreditar que a verdade somente pode ser encontrada nele mesmo, se ele não crer que ele apenas está apto a se erguer e a redimir a todos por meio da sua verdade, ele prontamente se rebaixa à condição de material etnográfico, e não de um grande povo. Uma nação que perde essa crença deixa de ser uma nação".

Francesco Scavolini, 47, doutor em jurisprudência pela Universidade de Urbino (Itália), especialista em direito canônico, é membro do Comites (Comitê dos Italianos no Exterior) de São Paulo.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Jorge Bornhausen: Alimentos mais caros

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.