São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2001

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OBSOLESCÊNCIA PRECOCE

Todos os sistemas jurídicos proíbem homicídios. Mesmo assim, assassinatos ocorrem em todas as partes do mundo. De modo análogo, pode-se afirmar que, apesar de muitos países, inclusive o Brasil, proibirem a clonagem humana, ela pode ocorrer em breve.
Existem obstáculos técnicos consideráveis, mas eles não impedem que se façam tentativas com chances de prosperar. As maiores dificuldades são de ordem moral: a idéia de produzir clones de pessoas, por alguma razão, repugna boa parte da humanidade. Outro "obstáculo" é o fato de que a clonagem, da forma como normalmente concebida pela maioria das pessoas, é relativamente inútil.
A idéia pode seduzir casais que queiram reviver um bebê perdido e até pessoas desinformadas que veriam no clone uma perspectiva de imortalidade. Na verdade, porém, o clone é como um irmão gêmeo univitelino, só que vários anos mais novo. Gêmeos univitelinos, vale lembrar, sempre guardam diferenças. O clone não herda memória ou personalidade, ou seja, o que o candidato à imortalidade pretendia conservar.
Existe, porém, um outro tipo de clonagem, a terapêutica, cujo futuro é mais promissor. A idéia é utilizar a técnica para obter células embrionárias indiferenciadas, isto é, células com capacidade de converter-se em qualquer tipo de tecido. Isso em tese permitiria curar doenças como Alzheimer e câncer e até restaurar órgãos comprometidos.
Ainda é cedo para saber se esse tipo de pesquisa vai progredir. Mas já é certo que ela está proibida no Brasil.
A lei 8.974-95, também conhecida como Lei de Biossegurança, veda a "produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servirem como material biológico disponível". Pena: reclusão de 6 a 20 anos. O Brasil corre, portanto, o risco de ficar para trás nesse tipo de investigação científica. Alguns países já a autorizaram.
As dificuldades da lei para lidar com a biotecnologia são notórias. Qual é a relação de parentesco -e portanto jurídica- entre modelo e clone? Pai e filho, irmãos? Ou será o clone apenas uma extensão do corpo do doador da célula, uma propriedade da qual pode dispor para, por exemplo, retirar um coração?
Regular matérias ligadas aos avanços científicos é um desafio. É necessário tentar fazê-lo, porque furtar-se a legislar significa autorizar tudo. Mas as mudanças, no conteúdo e nas possibilidades, são tantas e tão rápidas que fixar elementos é condenar a lei a envelhecimento precoce, como ocorreu com a brasileira.
Mais ainda, o principal critério para proibir ou autorizar algo acaba sendo uma avaliação moral de sua adequação. E a percepção da sociedade muda rapidamente. Quando surgiu o primeiro bebê de proveta, em 1978, muitas pessoas ficaram chocadas. Hoje a fertilização "in vitro" é procedimento quase rotineiro. O mesmo se deu com transplantes.
Os avanços no campo da ciência já estão a exigir uma reformulação do direito, de modo a lidar melhor com uma realidade dinâmica. O caminho parece ser enunciar princípios em vez de descrever procedimentos.


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