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TENDÊNCIAS/DEBATES
O Brasil é um país racista?
NÃO
O tempo não pára
MARY DEL PRIORE
A PALAVRA "raça" surgiu nos finais do século 15 para designar
as famílias reinantes na Europa. Sinônimo de linhagem, demorou
200 anos para ganhar outro sentido:
grupo que se diferenciava por um
conjunto de caracteres hereditários.
Em Portugal, no século 18, não
constava dos dicionários, embora os
descendentes de judeus, considerados gente de "raça infecta", fossem
proibidos de ter acesso a cargos públicos. Estatutos, denominados "de pureza de sangue", foram depois estendidos a ciganos, indígenas e afrodescendentes e tinham a ver com a desigualdade assentada na religião.
É no século 19, com Gobineau, autor de "Ensaio sobre a Desigualdade
das Raças Humanas", que a noção de
raça, associada às características físicas e a um passado comum, ganhou
força. Dicionarizada nos anos 30, a
palavra "racista" vai se referir à teoria
da hierarquia das raças, que pregava a
necessidade de preservar a raça superior de todo cruzamento e o seu direito de dominar as outras. "Mein
Kampf" foi o evangelho do racismo.
No século 19, despontou uma disciplina encarregada de estudar o problema. A antropologia designava, então, a arte de avaliar a cor da pele, medir crânios e definir raças. Debate antigo agitava a área: a origem da espécie humana seria única ou múltipla?
Foi recusando a heterogeneidade das
"raças" humanas que seus fundadores se deram um problema para pensar: se a humanidade era una, como
identificar, classificar e justificar a variedade dos modos de vida dos grupos
humanos? Hierarquizando as culturas, justificando as invasões coloniais
e valorizando o racismo, muitos pioneiros acabaram dividindo o mundo
entre "civilizados e primitivos".
No Brasil, tais concepções chegaram tarde. A simples introdução da
categoria "cor" nos censos do império
gerou protestos, e apenas aos finais
do século é que intelectuais brasileiros se interessaram pelo tema. Ante a
questão da mistura étnica que marcou a nossa formação, o que fazer?
Nina Rodrigues e Silvio Romero
buscaram mapear as contribuições da
"raça negra" a nossa formação. E muitos intelectuais inverteram as interpretações que previam a "degeneração da raça" como resultado da mestiçagem, apostando, ao contrário, que,
graças à imigração européia, o branqueamento seria a solução.
Se essas conclusões fortaleceram
preconceitos num momento em que
os últimos escravos estavam sendo libertados, elas não estabeleceram
fronteiras raciais nítidas entre as pessoas, pois valorizavam a própria miscigenação como uma forma eficiente
de convívio e branqueamento.
Há décadas, o debate sobre "raças"
ficou para trás, substituído pelo das
culturas, como conjunto de comportamentos e valores comuns. Houve
um duplo movimento: a afirmação da
importância do fator cultural como
fonte de diferença e conflito e a desconstrução da noção de cultura como
algo coerente, inalterado pelo tempo.
Aparentemente contraditórias, essas afirmações introduziram questões muito distantes de "se há racismo ou não". Elas perguntam em que
medida defender minorias ajuda a
perpetuar uma diferença que não está
longe da idéia de raça, dando suporte
ao etnocentrismo. Ou questionam se
o reconhecimento de identidades culturais é compatível com os princípios
de igualdade e liberdade, que são os
das modernas democracias.
A sociedade brasileira está em plena transformação. Não somos racistas, mas, sim, fazedores de preconceitos. Alimentamos intolerâncias. Nisso, não diferimos de congêneres de
outros países. Estranhamos o "outro"
diferente na cor, na religião, na condição econômica. Olhamos com desconfiança quem não é "como nós".
Ora, as ciências humanas ensinam
que os indivíduos criam convenções e
representações que dão sentido a sua
existência. Criando-as, eles podem
revisá-las e fazê-las evoluir, o que justifica a grande mudança que vivemos.
O foco nas diferenças encarnadas
nas minorias ajuda a passar em silêncio uma característica das sociedades
de massa: a grande uniformidade dos
modos de vida. "Nós", como os "outros", temos, hoje, mais coisas em comum do que diferenças. Nesse contexto, falar em racismo seria voltar ao
século 19. E, como diz o poeta -e o
historiador- "o tempo não pára".
MARY LUCY MURRAY DEL PRIORE, doutora em história
social pela USP com pós-doutorado pela Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais (França), é historiadora e autora, entre outras obras, de "História das Mulheres no
Brasil" (Prêmio Casa Grande e Senzala de 1998).
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