São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 2002

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O GOVERNO E O LOBBY

O governo federal agiu mal na intricada discussão acerca de uma operação de socorro estatal a empresas de telecomunicações.
O Banco Central atuou num terreno em que é muito difícil distinguir o interesse público do lobby privado ao apresentar, numa reunião de governo, documento reivindicando mudanças no modelo do setor formulado por empresa interessada no assunto. O ministro Pedro Parente afrontou o princípio de independência da Anatel ao denunciar o presidente interino da agência, Antonio Valente, à Comissão de Ética Pública. No exercício legítimo de suas atribuições, Valente resiste ao lobby.
Se há crise nas telecomunicações, ela não fica evidente numa primeira análise do balanço de 19 empresas concessionárias de telefonia fixa e celular. Treze obtiveram resultados positivos no ano passado. O ministro das Comunicações e o presidente interino da Anatel negam que haja crise sistêmica. Há quase consenso entre técnicos de que a perspectiva da telefonia brasileira está longe de ser a de um colapso iminente.
Há, sim, problemas isolados de regulação que precisam ser equacionados. Há crise internacional na área de telecomunicações cujas repercussões no Brasil devem ser criteriosa e transparentemente monitoradas. E há, também, muito erro de estratégia de negócios buscando o beneplácito da ajuda estatal, sob a forma de dinheiro, de revisões contratuais e de alterações legais.
A despeito disso, o Banco Central achou por bem transmitir ao governo a grita de um grupo privado de telefonia celular em dificuldades. Em reunião da Câmara de Política Econômica, o BC apresentou um documento prevendo colapso no setor caso o modelo não fosse alterado. A origem do estudo não foi divulgada pelo Banco Central, que disse se tratar da colaboração de um "amigo especialista". Mais tarde o segredo se revelou: assumiu a autoria do relatório a empresa BCP.
Não há nada de errado em uma empresa de telefonia apresentar seus pleitos ao poder público. Mas há motivo para grave preocupação quando, para fazê-lo, ignora a instância legítima, no caso a Anatel, e opta por outras vias. Tampouco pode passar sem as devidas explicações o fato de um agente público ter ocultado que o documento por ele apresentado foi produzido por uma empresa diretamente interessada no assunto.
Mas quem "pagou o pato" foi o presidente interino da Anatel. E o que foi desprezado, mais uma vez, foi o princípio da autonomia das agências reguladoras.
Fica a sensação de que o discurso neomoralizador que gestou o modelo de regulação por agências independentes não passa de verniz a ocultar velhas práticas nas quais interesses privados se apropriam do Estado. Quando a Anatel começou a ser vista como entrave à obtenção de ajuda estatal a empresas "em crise", aconteceu o seguinte: negociações passaram a dar-se diretamente com o Executivo; o presidente da Anatel pediu demissão; o interino foi desautorizado pelo governo; e o substituto foi indicado pela "área econômica".
A sucessão dos fatos não parece mera coincidência. Para quem propugna pelo avanço do controle democrático do poder no Brasil, trata-se de uma péssima notícia.


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