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São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Saco de espantos

RIO DE JANEIRO - Como o comprimento das saias e o corte do cabelo, as palavras costumam ir e vir no dia-a-dia de nosso vocabulário básico. Palavras saem de moda e retornam, e uma delas, com significado óbvio, é "saco", que, para todos os efeitos, já tinha dois significados, o de saco mesmo, e o de coisa chata, sacal.
Tanto os jornalistas como os políticos estão se referindo à reforma da Previdência como "um saco de maldades". Não sei quem relançou a palavra e o conceito em sua atual encarnação, mas quem por primeiro a empregou com esse significado, embora em contexto diverso, foi mesmo Machado de Assis.
Tinha ele um amigo, Artur de Oliveira, que era um rapaz inteligente, frasista dos melhores de seu tempo, e Machado o admirava. Pressionou Filinto de Almeida a escolher o rapaz como patrono da sua cadeira, a nš 3. Houve pasmo no meio intelectual da época, Artur de Oliveira nunca havia publicado nada.
Bem mais tarde, Afrânio Peixoto reuniu alguns artigos e frases de um dos patronos da ABL, sob o título óbvio de "Dispersos".
É evidente que Machado foi cobrado, e, para justificar sua escolha, saiu-se com esta: "Ele é um saco de espantos". Uma expressão bem machadiana, por sinal. E que Artur honrou, pois, entre as coisas espantosas de sua vida, está a carta de Gustave Flaubert ao editor Michel Lévy, autorizando que o saco de espantos traduzisse "Madame Bovary", tarefa literária que, sem espantar ninguém, ele também não realizou.
Guimarães Rosa foi pescar na linguagem quinhentista algumas palavras que colocou na boca de jagunços do sertão, onde ainda estão boiando ilhas do vocabulário de Gil Vicente e do frei Luiz de Souza.
Certa vez, usei a palavra "adrede" num texto antigo para substituir o "a fim de". Fui criticado pelo erro e pelo mau gosto, mas continuei adrede a mim mesmo e aos meus espantos.


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