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São Paulo, sábado, 19 de julho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O bom momento

RIO DE JANEIRO - Rotina profissional, o fotógrafo explicou que precisava captar a minha personalidade, encomenda de uma editora que publicaria alguns textos de minha combalida lavra.
Começa que não gostei de ser captado, odeio esse verbo e essa ação de captar os outros -e muito mais de ser captado. Mas vamos lá, sou também um profissional, cheguei mesmo a praticar o ofício de fotógrafo quando viajava ao exterior e a revista para a qual trabalhava me encarregava de fazer texto e fotos.
O rapaz estava bem equipado, máquina digital, examinou a luz ambiente de minha sala e não a aprovou. Depois cismou com a minha camisa, perguntou se eu não tinha outra para a ocasião de ser captado. Não, não tinha. Mas tinha um paletó que não combinava nem com a camisa nem com a minha cara, pois usei o paletó que caiu nas boas graças do fotógrafo, que o classificou de "maravilhoso".
A foto, reforçada com a maravilha do paletó que eu aposentara há muito, seria também maravilhosa, desde que eu colaborasse na gloriosa ação de ser captado. Aí ele pediu que eu desamarrasse a cara, olhasse para a câmara sorrindo. Não tinha nenhum motivo ou vontade para desamarrar a cara e muito menos para sorrir. Sorrir de quê? De estar sendo captado? E a cara amarrada, por que desamarrá-la? Vivo e sobrevivo bem com ela, seria uma traição para comigo mesmo e para com os outros aparecer com outra cara.
Para aliviar a tensão, o fotógrafo aceitou minha cara amarrada, mas pediu que eu fizesse alguma coisa, lesse um livro, me concentrasse diante do computador, qualquer coisa que me tirasse do sério, do boneco três por quatro que os fotógrafos detestam.
Aí eu engrossei. Disse que preferia a foto padrão, de frente e de perfil, dessas que os criminosos tiram quando são fichados na polícia. O rapaz não entendeu, mas fez o que eu pedia. Sem saber, ele conseguiu me captar num momento muito meu.


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