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CARLOS HEITOR CONY
O bom momento
RIO DE JANEIRO - Rotina profissional, o fotógrafo explicou que precisava captar a minha personalidade, encomenda de uma editora que publicaria alguns textos de minha combalida lavra.
Começa que não gostei de ser captado, odeio esse verbo e essa ação de
captar os outros -e muito mais de
ser captado. Mas vamos lá, sou também um profissional, cheguei mesmo
a praticar o ofício de fotógrafo quando viajava ao exterior e a revista para a qual trabalhava me encarregava
de fazer texto e fotos.
O rapaz estava bem equipado, máquina digital, examinou a luz ambiente de minha sala e não a aprovou. Depois cismou com a minha camisa, perguntou se eu não tinha outra para a ocasião de ser captado.
Não, não tinha. Mas tinha um paletó
que não combinava nem com a camisa nem com a minha cara, pois
usei o paletó que caiu nas boas graças
do fotógrafo, que o classificou de
"maravilhoso".
A foto, reforçada com a maravilha
do paletó que eu aposentara há muito, seria também maravilhosa, desde
que eu colaborasse na gloriosa ação
de ser captado. Aí ele pediu que eu
desamarrasse a cara, olhasse para a
câmara sorrindo. Não tinha nenhum
motivo ou vontade para desamarrar
a cara e muito menos para sorrir.
Sorrir de quê? De estar sendo captado? E a cara amarrada, por que desamarrá-la? Vivo e sobrevivo bem com
ela, seria uma traição para comigo
mesmo e para com os outros aparecer
com outra cara.
Para aliviar a tensão, o fotógrafo
aceitou minha cara amarrada, mas
pediu que eu fizesse alguma coisa,
lesse um livro, me concentrasse diante do computador, qualquer coisa
que me tirasse do sério, do boneco
três por quatro que os fotógrafos detestam.
Aí eu engrossei. Disse que preferia a
foto padrão, de frente e de perfil, dessas que os criminosos tiram quando
são fichados na polícia. O rapaz não
entendeu, mas fez o que eu pedia.
Sem saber, ele conseguiu me captar
num momento muito meu.
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