São Paulo, sábado, 19 de julho de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A atual forma de indicação dos ministros do STF compromete a autonomia do Judiciário?

SIM

O STF na agenda política

ANDRÉ RAMOS TAVARES

O FORMATO que o Brasil adotou para compor sua mais alta corte de Justiça, o STF (Supremo Tribunal Federal), é um retrato fiel da Suprema Corte dos Estados Unidos, criada em sua Constituição de 1787. O mecanismo é simples: o futuro integrante do tribunal é escolhido pela vontade exclusiva do presidente da República, atendidos alguns critérios mínimos de idade, reputação e capacitação jurídica.
Devo advertir o leitor de que não se trata de qualquer tribunal, como já havia percebido Campos Sales, enquanto ministro da Justiça do governo provisório republicano, em 1890, quando se instaurou definitivamente esse modelo entre nós. Isso porque a esse tribunal se confere o "poder" de anular as leis que considere inconstitucionais, além de ter a última palavra sobre processos judiciais importantes e sobre a interpretação da Lei Máxima de nossa sociedade.
O modelo exclusivamente político e pessoal de escolha admite uma estranha e indesejada proximidade entre o futuro integrante do tribunal e o chefe do Executivo que o indicou, numa espécie de cumplicidade que pode solapar a imprescindível imparcialidade que se espera do tribunal.
Permitir essa seleção unipessoal do presidente da República é admitir que venha a ocorrer a temida politização partidária do tribunal, realidade incontestável no caso da Suprema Corte norte-americana. Basta lembrar a tentativa do atual governo Bush de alcançar maioria conservadora (republicana) na Suprema Corte com o intuito de rever e reverter decisões mais "liberais".
No Brasil, o presidente Lula já indicou 7 de um total de 11 ministros do STF. Saiba o leitor que bastam seis ministros favoráveis para anular, com efeito geral, uma lei aprovada pelo Congresso. Tivessem sido feitas escolhas descuidadas e guiadas por motivos egoísticos, certamente teríamos uma gravíssima crise institucional.
Potencializa ao infinito esse perigo a atual vitaliciedade dos ministros (é preciso migrar para mandatos fixos não renováveis, como ocorre na esmagadora maioria dos países com Justiça constitucional). Se, de uma parte, garante-se, com a vitaliciedade, mais autonomia aos ministros, de outra parte, tem-se a perpetuação do nomeado.
Embora também haja, na história norte-americana e na brasileira, prognósticos que fracassaram totalmente sobre o que esperar dos juízes que estavam sendo indicados, isso não é minimamente suficiente para infirmar a precariedade do modelo, que revela, por si mesmo, a ascendência que um possível presidente aliciador pode assumir sobre o agraciado.
A atuação do Senado, no Brasil, tem sido pífia: invariavelmente se curva às escolhas presidenciais, confirmando-as. Mas, ainda que atuasse drasticamente, só poderia criar um mal-estar, constantemente recusando os nomes escolhidos pelo presidente, mas nunca podendo indicar um substituto.
A fórmula atual, apesar de ter sido exercida com sobriedade na maioria das indicações dos últimos tempos no país, baseia-se em um modelo arcaico e potencialmente gerador de grandes crises jurídico-políticas. Como fórmula abstrata, assemelha-se àquela própria do Estado absolutista, em que as cortes de Justiça eram o meio pelo qual o rei administrava a lei, sendo os juízes braços executores da vontade da monarquia, como bem narrou William Blackstone, em seus "Comentários às Leis da Inglaterra" (século 18).
Se no Brasil recente o modelo adotado não se tem prestado a gerar um cenário sombrio de distorção do Estado constitucional democrático, devemos isso mais a um feliz casuísmo do que a uma salvaguarda normativa bem estabelecida.
Em conclusão, o modelo em vigor é um dos mais trágicos. Alternativas não faltam. Destaco que uma nova fórmula deve consagrar a diversidade social, ideológica, política e econômica no tribunal, que "represente" as diversas facetas da complexa sociedade brasileira, permitindo um diálogo. O modelo atual ignora essa necessidade, única capaz de gerar a real autonomia. Essa discussão deveria entrar na agenda dos assuntos republicanos a serem urgentemente enfrentados.


ANDRÉ RAMOS TAVARES , 35, livre-docente em direito constitucional pela USP e professor da PUC-SP e do Mackenzie, é diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais. É autor, entre outras obras, de "Teoria da Justiça Constitucional" e "Reforma do Judiciário".

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