São Paulo, terça-feira, 19 de novembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Fome Zero: bom nome, má idéia

SÉRGIO FAUSTO

Fome Zero é um excelente nome para um programa de combate à subnutrição, problema secular que persiste no Brasil de hoje, ainda que em escala declinante. É sintético, forte, sonoro e de fácil compreensão quanto ao seu objetivo. Ao denominá-lo assim, o PT mostra estar atento à necessidade de criar marcas que o identifiquem e o diferenciem.
Várias vezes, o presidente Fernando Henrique reclamou publicamente dos nomes atribuídos por sua equipe aos programas assistenciais de combate à pobreza criados e/ou ampliados ao longo de seus dois mandatos.
Os programas que formam a chamada rede de proteção social, antes praticamente inexistente no país, são no geral bons programas, reconhecidos como tais, mas que, na sua maioria, atendem por nomes insossos ou mesmo incompreensíveis.
Eles não resultam de um lampejo genial do atual governo, mas de uma construção coletiva que se iniciou na Constituição de 1988 e tem contado com a participação de vários partidos, diversas lideranças e muitas administrações estaduais e municipais. O mérito do atual governo foi tirar parte importante deles do papel (justamente os que mais e melhor beneficiam os mais pobres) e implementá-los em moldes adequados. São programas descentralizados, impermeáveis à interferência política e acompanhados de controle social, além de articulados com os programas sociais de caráter universal, principalmente nas áreas do ensino fundamental e da saúde básica.
Estão aí: a Previdência Rural (R$ 17,5 bilhões, no projeto de lei orçamentária para 2003, e 6,5 milhões de trabalhadores rurais beneficiados); o Seguro Desemprego (R$ 5,7 bilhões e 4,7 milhões de trabalhadores beneficiados); o Benefício de Prestação Continuada (R$ 3,8 bilhões e 1,5 milhão de idosos e deficientes pobres beneficiados); a Renda Mensal Vitalícia (R$ 1,9 bilhão e 640 mil idosos e inválidos pobres beneficiados); o Bolsa-Escola (R$ 1,8 bilhão e 10 milhões de crianças de 6 a 15 anos de idade beneficiadas); o Abono PIS/Pasep (R$ 1,2 bilhão e 5,6 milhões de trabalhadores de baixa renda beneficiados), o Peti, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (R$ 503 milhões e 800 mil crianças de 7 a 14 anos beneficiadas), o Bolsa-Alimentação (R$ 360 milhões e 2 milhões de nutrizes, gestantes e crianças de até 6 anos beneficiadas).
Desses, o Bolsa-Escola, o Bolsa-Alimentação, o Peti e o Benefício de Prestação Continuada foram criados no governo Fernando Henrique.
Esse amplo e diversificado conjunto de programas de renda mínima transfere para mais de 30 milhões de cidadãos brasileiros um montante superior a R$ 30 bilhões ao ano. Um único instrumento, o cartão do cidadão, permite aos diversos beneficiários ter acesso individual à transferência que lhes é devida, por meio do sistema financeiro e dos correspondentes bancários (principalmente casas lotéricas).


O PT preferiu até aqui o simbolismo forte do Fome Zero. Ocorre que o simbolismo, neste caso, provoca retrocesso


Seguramente, grande parte dos brasileiros que sofrem de carência alimentar está assistida por esses programas. Todavia não é possível responder hoje, com um grau razoável de certeza, quantos não estão e quantos estão e permanecem, ainda assim, subnutridos. São questões cruciais para quem se propõe a adotar a subnutrição como foco central das políticas assistenciais de combate à pobreza.
Para respondê-las, não seria necessário partir da estaca zero, uma vez que já se iniciou a formação do cadastro único da rede de proteção social. Além disso, existe conhecimento acumulado nas universidades e instituições de pesquisa sobre a distribuição social e geográfica da desnutrição.
O PT, porém, preferiu até aqui o simbolismo forte do Fome Zero. Ocorre que o simbolismo, neste caso, provoca retrocesso. A ressurreição dos cupons de alimentação recriaria o espaço de intermediação política suprimido ou minimizado pelos programas existentes. O Fome Zero pagaria, assim, um tributo indevido e desnecessário ao Brasil arcaico. Um tributo não apenas em sentido metafórico, mas quase literal, pelo que implicaria em termos de má focalização e desperdício de recursos públicos escassos.
Ainda que os defeitos operacionais mais óbvios sejam solucionados, restaria uma questão a examinar. Dadas as restrições fiscais conhecidas e que não serão menores no curto e no médio prazo, a implantação do Fome Zero acarretaria uma de duas situações possíveis: ou bem o programa ficaria muito aquém dos objetivos anunciados, ou limitaria a expansão de programas sociais que estão a ganhar fôlego, entre eles o Bolsa-Escola e o Bolsa-Alimentação, que cobrem o ciclo crítico de formação física, psicológica e educacional da pessoa e dirigem-se à faixa etária em que maior é a concentração da pobreza no Brasil.
Fica a pergunta: não seria socialmente mais eficaz, inclusive para atacar a subnutrição, concentrar os recursos disponíveis na ampliação desses programas? Afinal, como disse o presidente eleito durante a campanha, programas governamentais não têm dono. Se dão certo, é bom para todo mundo.


Sérgio Fausto, 40, cientista político, é assessor da Secretaria Executiva do Ministério da Fazenda.


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