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São Paulo, segunda-feira, 20 de janeiro de 2003

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Rediscutindo a natalidade

CACILDA TEIXEIRA DA COSTA


Sim, é preciso cuidar preferencialmente das mulheres, das meninas e das mães pobres para reduzir a tragédia social


O lúcido e corajoso Drauzio Varella, em artigo sobre a questão demográfica ["O silêncio diante da explosão demográfica" (Ilustrada, pág. E16, 14/12/2002)", mostra, com a clareza de um cientista, um quadro muito preocupante que, de certa forma, se resume nessas linhas: "Em 1980, na faixa em que se concentra grande parte das mães de baixa renda, para cada 100 mulheres, nasciam 8 filhos: hoje nascem 9,1". Assim, toca num ponto doloroso: o silêncio irresponsável de nossa sociedade diante da injustiça absurda que permite que as mulheres das classes média e alta, desfrutando de todas as facilidades e de ajuda, possam limitar o número de filhos e tenham aqueles que julgam serem capazes de criar (mesmo assim, muitas não o fazem com sucesso), enquanto as moças que vivem nas favelas ou periferias, além das vicissitudes da pobreza, ainda são castigadas pelo governo (geralmente temeroso das instituições religiosas), que lhes nega informações, programas de saúde, acesso aos métodos de contracepção e planejamento familiar.
Com grande frequência, as meninas pobres ficam grávidas precocemente, aos 13 anos, 14 anos ou mesmo 12 anos (sei de uma garota de 16 anos que tem três filhos), a maioria sem contar ao menos com o apoio de um companheiro, pois os rapazes, em muitos casos, pouco se importam. Como o doutor Varella mostra, a nova situação da mulher foi uma conquista indiscutível, mas distanciou os homens da responsabilidade, e, se as mulheres não tiverem a informação e os meios necessários para evitar a concepção, acabarão por arcar sozinhas com os filhos indesejados.
E aí, quando a gente fala nisso, respondem-nos com os dados estatísticos de decréscimo da natalidade que Drauzio Varella mostra serem uma falácia, pois escamoteiam a dura realidade de que, na faixa de baixa renda, ela aumentou, confirmando a percepção das pessoas que trabalham nas periferias e o fato de que as entidades filantrópicas recebem cada vez mais crianças abandonadas. E isso é o pior.
Toda mãe sabe a energia, a responsabilidade, a preocupação e o trabalho (sem falar nas despesas) que um filho desejado e planejado representa. Que dizer, então, de um concebido contra a vontade -por falta de informação ou de acesso a métodos de controle? A maior parte das mães que concebem assim e, principalmente, as adolescentes, com as exceções que confirmam a regra, não têm condições mínimas, nem psicológicas nem materiais, de criar e educar esses filhos, que representam também o fim de suas possibilidades de estudar, trabalhar e abrir melhores perspectivas de vida.
As crianças geralmente são rejeitadas, mal-amadas, espancadas, muitas vezes abandonadas e, como consequência, exploradas e abusadas de todas as maneiras que conhecemos (e de outras em que nem ousamos pensar). Certamente, constitui um crime enorme e gravíssimo a quantidade de crianças jogadas nas ruas, esmolando, sofrendo, drogando-se, morrendo e sendo mortas. E Varella define com precisão a natureza desse crime: é de omissão.
Omissão por muitas razões, mas, na raiz, por se negar aos que mais precisam o acesso à educação, aos programas de saúde e aos meios de contracepção, enquanto a televisão difunde novos modelos de comportamento sexual que foram criados pelos que têm esse acesso, não correm riscos e vivem como se estivessem na Pasárgada de Manuel Bandeira, onde:
"...É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção".
A televisão é um instrumento sensível que registra as transformações da sociedade; mas, no Brasil, parece se limitar unicamente ao registro e silenciar diante dos efeitos contraditórios que ocorrem, sem se comprometer com a crítica à omissão do governo. Por que não mostram, nas novelas, a dificuldade que as mulheres pobres têm para exercer o direito de gerar o número de filhos que consideram adequado à sua capacidade de criá-los com dignidade ? Por que não fazem o "reality show" de um barraco em que uma mulher solteira cria cinco filhos ou de mães em total desamparo, deixando seus bebês abandonados numa instituição ?
Os documentários que vemos mostram as crianças na miséria, no lixo, cobertas de moscas, servindo aos traficantes de drogas, mas não analisam profundamente essa realidade, não se detêm no drama dos responsáveis por elas, as mães que não as desejavam e não tinham (nem têm) condições de criá-las. Habilmente, as televisões dirigem o foco para o que não lhes traz problemas, ficando com a aura do "politicamente correto" sem enfrentar a força dos preconceitos contra as mulheres e a ação de grupos religiosos enfurecidos, que defendem ideologias medievais contra qualquer método de contracepção, maldição que atinge em cheio as pobres e despossuídas, pois as outras têm meios de escapar.
Agradeço ao doutor Varella por seu artigo, que revela a perspicácia do cientista e a compaixão de um grande homem. Sim, é preciso cuidar preferencialmente das mulheres, das meninas e das mães pobres para reduzir a tragédia social. Na época do Natal, víamos, nos presépios, a imagem de uma família sagrada com um filho. Esperemos que o exemplo seja compreendido.

Cacilda Teixeira da Costa é doutora em artes pela USP e colaboradora do Lar da Tia Maria, uma entidade filantrópica situada no Alto do Mandaqui, em São Paulo.


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