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São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

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A QUÍMICA DA VIDA

Comemoram-se na próxima sexta-feira os 50 anos da publicação do "paper" em que os cientistas James Watson e Francis Crick descrevem a estrutura do DNA (o ácido desoxirribonucléico), a molécula que carrega as instruções bioquímicas para que cada organismo cresça e viva como membro de sua espécie.
Tratou-se, sem sombra de dúvida, de um dos mais importantes feitos científicos do século passado. Permitiu que se transitasse da idéia abstrata de genes que, sem que ninguém soubesse como, transmitiam certas características hereditárias para a noção bastante concreta de que cada ser vivo é, em alguma medida, a expressão de uma combinação única de bases químicas. No caso dos seres humanos, uma sequência de mais de 3 bilhões delas.
Mas seria injusto atribuir só a Watson e Crick a glória pela descoberta. Tratou-se, como quase tudo na ciência, de um esforço coletivo para o qual foram fundamentais contribuições de vários pesquisadores, que, desde Gregor Mendel (1822-1884), considerado o "pai" da genética, vinham se esforçando para explicar a variedade e a exuberância da vida.
O esforço, é claro, não acabou. A descoberta da estrutura do DNA encontra agora, 50 anos depois, seu ponto culminante, com a concretização do Projeto Genoma Humano (PGH), o mapeamento completo dos genes da espécie humana.
Por enquanto, a genômica é pouco mais que uma promessa. Investiram-se US$ 2,7 bilhões no PGH, mas, por ora, o que ele trouxe foram sobretudo dados brutos, que ainda temos enormes dificuldades para interpretar. Espera-se, contudo, que o sequenciamento do genoma venha a inaugurar uma nova era na medicina, em que as doenças serão tratadas com remédios feitos "sob encomenda" para cada paciente, mais efetivos e com menos efeitos colaterais.
Ninguém arrisca estipular prazos para essa "nova era". Nem seria prudente fazê-lo. Um dos mais surpreendentes resultados do PGH foi a notícia de que o ser humano tem apenas de 30 mil a 40 mil genes, contra os mais de 100 mil esperados.
Paradoxalmente, esse número de genes revela que a biologia molecular deve ser bem mais complexa do que se supunha. A noção simplista de que cada gene codifica uma proteína, ou de que cada gene é responsável por uma característica, seja a cor dos olhos, a esquizofrenia ou o câncer de mama, que já apresentava problemas, precisa ser agora abandonada de uma vez por todas.
Em termos práticos, as primeiras interpretações do genoma sugerem que vai ser mais difícil do que se imaginava desenvolver as terapias milagrosas que curariam doenças apenas ativando ou desativando um gene.
Já há tempos a biologia enfrenta uma crise. Ela terá de ser, em algum grau, reformulada. Entre outras mudanças, ela provavelmente passará a incorporar um instrumental matemático-estatístico que dê conta de estabelecer modelos para cadeias complexas de interações. No fundo, o que se verifica com o genoma não é tão surpreendente assim. Praticamente todos os fenômenos físicos e químicos somente se explicam em termos de cadeias longas, que envolvem dezenas ou centenas de reações. Surpreendente seria se a biologia molecular escapasse a esse modelo.
Meio século depois da descrição da estrutura do DNA por Watson e Crick, aprendemos muito e hoje sabemos o suficiente para afirmar que sabemos ainda muito pouco sobre a "química da vida".


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