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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A fala do trono

RIO DE JANEIRO - Que os colunistas políticos, que tanto os aprecio, me perdoem. Na dura pedreira de buscar assunto, eles se prendem às declarações, geralmente circunstanciais, dos principais personagens da vida pública. Com isso, o noticiário de um jornal fica poluído, diminuindo a importância das próprias declarações, que na maioria das vezes nada declaram.
Esse fenômeno (pois não deixa de ser um fenômeno pleonasticamente fenomenológico) é mais irritante quando um desses personagens, o presidente da República, por exemplo, viaja ao exterior e a toda hora, a cada compromisso que cumpre, a cada hotel que se hospeda, é instado a dizer alguma coisa. Essa alguma coisa serve de mote a extensas colunas, com suposições, ilações, divagações, intenções e ilusões sobre a vida nacional.
Pelo ritmo apressado dessas viagens, pelos inesperados encontros com os microfones e jornalistas, é natural que a autoridade diga alguma coisa genérica por delicadeza ou por qualquer outro pretexto de circunstância.
É o que basta para que a turma da retaguarda faça cavilações intensas e extensas sobre isso ou aquilo, deduzindo que os juros subirão ou diminuirão, que a Previdência vai falir e a violência urbana vai acabar, que os sem-terra terão terra, mas a ordem será mantida. Num simples check-in de hotel no exterior, o presidente retifica ou ratifica todo o programa de seu governo, promete o que ainda não prometeu e deixa de prometer o que dele se espera.
A culpa não é do presidente. Ele se vê obrigado a dizer o que pensa disso ou daquilo, mesmo quando não pensa nada. Mas suas palavras jorram como uma fala do trono, e os profissionais da mídia são obrigados a extrair uma linha de pensamento ou de ação, a fazer prognósticos.
Contam que De Gaulle, chegando a um hotel, foi questionado sobre o que achava de Jacqueline Kennedy, que sem saber fora fotografada nua. De Gaulle pediu que o repórter fizesse a pergunta ao Onassis, marido dela.


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