|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Fundamentalismo ou nacionalismo?
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
Os europeus conquistaram os povos da América em nome do cristianismo; agora a conquista é realizada em nome da democracia
HOJE ESTÁ claro o sentido da
"guerra ao terrorismo" que o
presidente Bush declarou em
2001. É a forma através da qual os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e Israel
exercem supremacia sobre os países
muçulmanos do Oriente Médio. Os
motivos podem variar: o petróleo
aparece sempre em primeiro lugar;
para os Estados Unidos, existe um
problema de húbris nacional; para Israel, um problema de segurança. A
justificativa, porém, não apresenta
novidade. Da mesma forma que os
colonizadores europeus conquistaram os povos da América em nome do
cristianismo, agora a conquista é realizada em nome da democracia.
Já o sentido do "terrorismo" é menos claro. Esse é um fenômeno ambíguo e contraditório que as potências
envolvidas têm todo o interesse em
definir como movimentos religiosos
islâmicos fundamentalistas. Dessa
forma, o problema é reduzido a uma
"guerra de civilizações" ou à luta do
bem contra o mal, que tudo justifica.
Minha interpretação é diferente.
Os movimentos islâmicos são essencialmente movimentos políticos nacionalistas empenhados na luta para
dotar as respectivas nações de um Estado que lhes sirva de instrumento de
ação coletiva. A religião está fortemente presente, mas é a arma ideológica usada na sua luta pela soberania
nacional. Não há novidade nessa prática. A primeira nação moderna, a Inglaterra, fundou uma igreja -a Igreja
da Inglaterra, que até hoje é a religião
oficial da Grã-Bretanha- para afirmar a sua própria independência em
relação ao papado e mais amplamente ao continente europeu.
A luta pela libertação nacional será
tanto mais dura quanto mais perniciosa for a dominação estrangeira. No
Oriente Médio, ela tem sido profundamente desestruturadora do tecido
social nacional. Antes de serem submetidas, essas sociedades possuíam
instituições, ainda que precárias. A
dominação externa as destruiu sem
ter sido capaz de substituí-las por outras, implantou um sistema generalizado de corrupção e abriu espaço para a ação de "senhores de guerra"
("war lords") e para o restabelecimento e a prosperidade do tráfico de
drogas. Foi o que aconteceu com o xá
que o imperialismo impôs ao Irã; foi o
que vimos recentemente no Afeganistão e na Somália; é, somado a uma
guerra civil, o que estamos vendo no
Iraque depois da sua invasão pelos
exércitos dos Estados Unidos e da
Grã-Bretanha.
Não é preciso ler publicações de esquerda para saber disso: basta ler
"The Economist". No seu número de
14 de julho, por exemplo, há uma
grande reportagem sobre o Afeganistão. Depois de um período em que a
ocupação estrangeira parecia ter êxito, havendo sido capaz de eleger um
governo, a situação deteriorou-se nos
últimos meses. O Taliban está de volta. Já domina grande parte do sul do
país, financiando-se pela imposição
de tributos ao tráfico de drogas, que
ele próprio condena. Como explicar o
poder desse grupo fundamentalista
que agora renasce? O fundamento religioso nada explica; não há no Islã
nada que leve necessariamente à violência ou à Jihad. Sempre houve movimentos islâmicos violentos, mas os
movimentos cristãos igualmente violentos não lhes ficam nada a dever.
Só o nacionalismo pode explicar a
força do Taliban. Esse grupo sabe
que, quando uma nação consegue se
dotar de um Estado e de um território, ela terá o instrumento necessário
para buscar os objetivos nacionais de
ordem e desenvolvimento. A religião
muçulmana é o instrumento intermediário que o Taliban usa para
transformar o povo afegão em uma
nação e dotá-lo de um Estado realmente autônomo. Para isso, a rigidez
religiosa é útil. Quando faltaram instituições civis, a alternativa sempre
foi buscar as religiosas. Os inimigos
não são apenas as potências imperiais. São também os colaboradores
internos, como o atual presidente
afegão, cujo governo já está imerso na
corrupção e comprometido com os
senhores de guerra que vivem do tráfico de drogas. O próprio Taliban se
aproveita do tráfico, mas, quando estava no governo, não hesitava em
condenar à morte os traficantes. Hoje, sob o domínio democrático das potências imperiais, o tráfico corre solto: a desmoralização nacional é profunda.
A indignação dos povos árabes contra a dominação estrangeira -não
apenas nos países citados mas em
muitos outros países árabes- é profunda e, sendo impotente, acaba se
manifestando através do terrorismo.
Não é, porém, com a "guerra ao terrorismo" que esse fenômeno terrível
poderá ser enfrentado, mas com uma
revisão radical da forma pela qual os
Estados Unidos e a Grã-Bretanha encaram suas relações com os países do
Oriente Médio. O nacionalismo árabe
só abandonará a violência fundamentalista que hoje o caracteriza se esses
dois países compreenderem que não
precisam dominar a região para ter
acesso ao seu petróleo. E que a sua segurança só aumentará com essa mudança.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, 72, professor
emérito da Fundação Getúlio Vargas, ex-ministro da
Fazenda (governo Sarney) e da Reforma do Estado e da
Ciência e Tecnologia (governo FHC), é autor de "As
Revoluções Utópicas dos Anos 60" (Editora 34), entre
outras obras.
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Matilde Ribeiro: Inclusão e cotas raciais e sociais Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|