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São Paulo, sábado, 20 de setembro de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Moinhos de vento

RIO DE JANEIRO - De alguma forma, Machado de Assis e Eça de Queiroz foram os escritores do século 19 que mais influíram na literatura brasileira do século seguinte. Seria ótimo se os dois se entendessem, mas ambos tiveram desavenças. Como admirador de um e de outro, nunca entendi a birra que Machado tinha por Eça.
Como romancistas, os dois pairam acima da vicissitudes humanas, cada qual em seu estilo e modo; foram e continuarão grandes. Mas como perdoar duas pisadas de bola de Machado a respeito de Eça, por ocasião da publicação de "O Crime do Padre Amaro" e "O Primo Basílio"?
No primeiro romance de Eça, o patriarca de nossa literatura viu plágio de Zola, a quem Machado parecia detestar. A suspeita é infantil, o padre Amaro de Eça nada tem do padre Mouret de Zola, afora o título.
Pior mesmo foi a crítica a "O Primo Basílio", que Machado tentou destruir com um argumento que não combina com sua genialidade de romancista e mestre nos labirintos da alma humana. Cometeu inclusive a bobagem de querer reescrever o texto de Eça, mudando fundo e forma da própria história. Machado diz que o adultério de Luísa foi substituído, na intriga do romance, pela chantagem da empregada que guardara cartas da patroa e ameaçava mostrá-las ao marido. Se não houvesse a chantagem -diz textualmente Machado- , o romance terminaria ali mesmo, com o casal se reconciliando, Basílio em outra aventura, em Paris, e o casal vivendo feliz, o tempo apagando a traição da mulher.
Machado coloca um "se" na argumentação. Se não houvesse a chantagem, não haveria o romance. E daí? O mesmo argumento pode ser atirado contra qualquer romance, inclusive contra o próprio Machado. Se Escobar não tivesse morrido afogado, Bentinho suspeitaria da fidelidade de Capitu? Se Dom Quixote não lesse romances de cavalaria, atacaria moinhos de vento?


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