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São Paulo, quinta-feira, 20 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Pela promoção da igualdade racial

MATILDE RIBEIRO

No clássico "O Abolicionismo", Joaquim Nabuco profetizava: "O processo natural pelo qual a escravidão fossilizou nos seus moldes a exuberante vitalidade do nosso povo durou todo o período de crescimento e, enquanto a nação não tiver consciência de que lhe é indispensável adaptar à liberdade cada um dos aparelhos de que a escravidão se apropriou, a obra desta irá por diante, mesmo quando não haja mais escravos".
Lamentavelmente, o estadista do Império não poderia ter sido mais perspicaz e certeiro.
O 14 de maio de 1888 deu ensejo a uma sinistra simbiose: à omissão estatal em face das desigualdades e da discriminação racial, somaram-se a construção e a legitimação de um discurso que negava a existência e a gravidade do racismo no período pós-republicano.
Durante mais de um século, o Estado brasileiro, com o beneplácito e o engajamento entusiasmado de setores da academia, dos partidos políticos e da imprensa, optou por negar as evidências do cotidiano, fazendo de conta que o problema não existia, como se a hipocrisia e a passagem do tempo pudessem equacionar e enfrentar um caráter estrutural da formação social brasileira.
Não fosse a pertinácia, o vigor e a eficácia da atuação do movimento negro brasileiro, o insepulto mito da democracia racial brasileira ainda estaria nas paradas de sucesso.
O resultado prático daquela simbiose pode ser mensurado por meio de dados produzidos pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), segundo os quais, durante todo o século passado, a despeito dos arroubos de crescimento econômico, as desvantagens entre negros e brancos no tocante ao nível de escolaridade, distribuição da massa salarial etc. permaneceram praticamente intactas. Decerto não por mera casualidade.
Até o final do século 19, mais precisamente 1872, o país registrava a existência de leis que proibiam o acesso de negros e negras, livres ou libertos, a escolas de qualquer nível, lembrando que a criação dos primeiros cursos de nível superior data do início do século 19.


A inexistência de ódio racial explícito não impediu que o Brasil criasse um pitoresco modelo de relações raciais


Daí por que não é a mesma coisa ser branco pobre e negro pobre no Brasil.
A utilização do critério da cor/raça como elemento diferencial na distribuição de direitos e oportunidades faz com que um branco pobre, a começar pela identidade estabelecida com o currículo escolar, tenha muito mais possibilidades de ascensão social que um negro pobre.
O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como também o ministro Graziano, tem acentuado frequentemente aquilo que as estatísticas demonstram de modo cabal: ao menos 70% dos pobres são negros.
São pobres porque são negros, porque enfrentam uma monumental hostilidade racial no espaço escolar, porque enfrentam práticas discriminatórias no acesso à relação de emprego, porque ingressam mais precocemente no mercado de trabalho, porque são os últimos a serem admitidos e os primeiros a serem demitidos, porque percebem os menores salários e geralmente são empurrados para as funções mais insalubres.
A inexistência de ódio racial explícito, de tensão racial patente não impediu que o Brasil criasse um pitoresco modelo de relações raciais: ainda segundo o Ipea, durante o regime do apartheid, a África do Sul registrava, em comparação com o Brasil, um número superior de negros nas universidades e em postos de prestígio da indústria.
A resposta a esse quadro só pode ser dada por uma política de Estado, perene, disciplinada por lei, cuja execução co-responsabilize o conjunto do governo e as forças vivas da sociedade, de modo que à secretaria da qual sou titular cumpre valer-se do peso político conferido a um ministério de Estado, responsabilizando-se pela coordenação, articulação e monitoramento da política de promoção da igualdade racial que o presidente da República irá tornar pública neste 20 de novembro.
Ao fazê-lo, sem dúvida nenhuma o presidente Lula estará inaugurando uma nova página na história da luta pela liberdade e pela democracia no Brasil, sobretudo se levamos em conta que a questão racial não consubstancia um problema dos e para os negros, mas sim um desafio para a consolidação democrática e o desenvolvimento econômico do nosso país.
Nossa esperança é que haverá um dia em que não mais será necessária a adoção de políticas voltadas especificamente para um determinado segmento, étnico-racial, de gênero ou etário.
A fim de que esse dia chegue o mais brevemente, cada um de nós está chamado a contribuir para que a igualdade formal seja traduzida em igualdade de oportunidades e de tratamento para negros, brancos, homens, mulheres e assim por diante.

Matilde Ribeiro, 43, mestra em serviço social pela PUC-SP, é ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.


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