São Paulo, quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

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Fundação Zerbini ou Incor?

CÉSAR AUGUSTO MINTO, FRANCISCO MIRAGLIA e PEDRO ESTEVAM DA ROCHA POMAR

Já não é hora de o Incor voltar a ser gerido exclusivamente pelo poder público, sem intromissão de entidades privadas?

A CRISE financeira da Fundação Zerbini foi revelada já em dezembro de 2001, numa reportagem da "Revista Adusp" nš 24. Veio à tona a dívida com o BNDES e o envolvimento em projetos díspares, inclusive empresas (apesar de sua condição legal de entidade filantrópica). Fernando Menezes, seu presidente na época, assim resumiu a situação: "Isso aqui tem sido um trem fantasma: cada curva tem um esqueleto".
Quatro anos depois, a crise explodiu, ganhando as páginas dos jornais. Só então a sociedade brasileira notou que na Fundação Zerbini havia algo de errado, que não correspondia à imagem cuidadosamente esculpida por seus defensores.
Uma estrepitosa disputa entre as cúpulas do Hospital das Clínicas (HC) e do Incor (Instituto do Coração), em fins de 2005, gerou mútuas acusações públicas. O professor José Franchini Ramires, diretor-presidente do Incor, foi destituído pelo Conselho Deliberativo do HC. Seus opositores pediram à Promotoria de Fundações do Ministério Público Estadual que investigasse uma suposta malversação de recursos.
Descobriu-se, na ocasião, que a dívida total da Fundação Zerbini chegara aos R$ 200 milhões; que os bancos credores eram uma dezena; que havia fornecedores sem receber; que a entidade criara "filiais" do Incor em Brasília, Salvador e Osasco; que se envolvera em programas de saúde que nada tinham a ver com cardiologia etc.
Esperava-se, a partir de tais revelações, que a mídia investigasse com rigor os problemas da fundação privada responsável pela gestão do Incor e que o poder público tomasse as providências para evitar que a crise contaminasse o atendimento do SUS (Sistema Único de Saúde) naquele hospital público, já prejudicado pela instituição da "dupla porta", isto é, o atendimento VIP de convênios e particulares. Mas nem uma coisa nem outra.
Seria preciso a Fundação Zerbini atrasar o pagamento de salários para que fosse percebido -só em novembro de 2006- o colapso iminente. Rapidamente se montou um lobby para buscar socorro financeiro para a entidade. A Fundação Zerbini logo passou a ser apresentada como "mantenedora" do Incor, como se o hospital pudesse sobreviver sem as verbas públicas que o irrigam desde sua origem até a atualidade.
Porém, os governos federal e estadual, que, inicialmente, sinalizaram com auxílio imediato, recuaram ao conhecer o passivo da entidade e os graves desvios de finalidade cometidos no período posterior a 1998. A Fundação Zerbini deve hoje R$ 117 milhões ao BNDES. Suas atividades em Brasília estão sendo investigadas pela PF. O Ministério Público Federal recomendou aos ministérios da Saúde e da Fazenda que não forneçam mais verbas à entidade privada, cuja dívida global é de R$ 245 milhões.
O colapso da Fundação Zerbini indica não só uma crise de gestão. Indica, sobretudo, uma crise de modelo. O modelo implodiu, como se tornou evidente em 2005, pela constatação de que interesses pessoais e de grupos se sobrepuseram ao interesse público. A Adusp sempre denunciou a ilegalidade e a impropriedade da subordinação de hospitais públicos a fundações privadas, bem como a cobrança de "taxas de administração" sobre recursos do SUS. Serviços públicos de saúde são um direito inalienável da população, sendo incompatíveis com a mercantilização da medicina.
A privatização da gestão pode estimular aventuras e descaminhos. Como o Incor Brasília, que se revelou deficitário, porque concebido como hospital de ponta para atendimento de figurões, e cujas contas têm sido recusadas por órgãos fiscalizadores.
A mitologia pró-fundações privadas apresenta como algo positivo a "agilidade" de tais entidades, supostamente desobrigadas de promover licitações, ignorando que 1) verbas públicas exigem licitações mesmo quando manejadas por entidades privadas e que 2) ausência de licitações costuma resultar em favorecimentos ilícitos.
O colapso da Fundação Zerbini provoca indagações sobre a atuação da Promotoria de Fundações. Levada a investigar as denúncias em 2005, concluiu que não havia irregularidades. Recentemente, porém, o promotor Airton Grazzioli declarou: "O tamanho da dívida já seria suficiente para a Zerbini precisar de intervenção. O patrimônio foi totalmente comprometido" ("O Estado de S. Paulo", 9/11/06). Em seguida, alegou que não pode intervir, pois o caso envolve pacientes do SUS!
Não é o caso de submeter a Fundação Zerbini a ampla auditoria conjunta do Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal e Tribunal de Contas da União? Já não é hora de o Incor voltar a ser gerido exclusivamente pelo poder público, sem intromissão de entidades privadas?


CÉSAR AUGUSTO MINTO, 57, é professor doutor na Faculdade de Educação da USP e presidente da Adusp (Associação dos Docentes da USP). FRANCISCO MIRAGLIA, 60, é professor titular do Instituto de Matemática e Estatística da USP e vice-presidente da Adusp. PEDRO ESTEVAM DA ROCHA POMAR, 49, é editor da "Revista Adusp".

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