São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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FÁBRICA DE VÍRUS

O que deveria ser uma notável experiência científica deu lugar a um intenso debate sobre terrorismo que inclui até mesmo propostas de censurar sequências genéticas de agentes causadores de doenças.
O experimento que ensejou toda essa polêmica foi anunciado na semana retrasada. Um grupo de cientistas dos EUA conseguiu -utilizando apenas informação genética que pode ser encontrada na internet e produtos químicos que também podem ser encomendados pela rede e são entregues pelo correio- sintetizar o vírus da poliomielite.
Os cientistas da Universidade de Nova York em Stony Brook, financiados pelo Pentágono, após três anos de trabalho, foram capazes de produzir uma variante totalmente artificial do vírus da pólio. Inoculados em ratos, esses agentes provocaram a paralisia característica da doença.
Se os pesquisadores fossem terroristas e quisessem obter amostras de algum vírus para fabricar armas, não teriam escolhido a pólio (uma moléstia pouco infecciosa) e muito menos fabricá-lo a partir do nada. Teria sido bem mais fácil encontrar variantes naturais dessa doença, que ainda ocorre na Ásia e na África.
O experimento causou preocupação porque mostrou que é em princípio possível fabricar agentes patógenos a partir de informações genéticas públicas e sequências de nucleotídeos (bases de DNA) que podem ser encomendadas a várias empresas por 40 centavos de dólar cada base. Obviamente, é preciso também o conhecimento para transformar os nucleotídeos em vírus infectantes.
O vírus da pólio é de pequenas dimensões. Tem cerca de 7.500 bases de ácido nucléico. A título de comparação, o ser humano tem cerca de 3 bilhões delas. Um vírus mais letal, como o da varíola (que em princípio só existe em laboratórios dos EUA e da Rússia), 186 mil. Mas o trabalho também sugere que, alterando algumas sequências da programação genética, será possível transformar linhagens naturais de alguma doença em cepas mais letais. A gripe espanhola, por exemplo, uma variante da gripe comum, matou cerca de 40 milhões de pessoas em 1918.
Como era natural, depois do anúncio do experimento da pólio, surgiram vozes propondo maior controle sobre as empresas que vendem sequências de nucleotídeos e mesmo sobre as informações genéticas disponíveis na internet. Houve até mesmo quem criticasse os cientistas por ter publicado os resultados de suas pesquisas. A divulgação pode ter, segundo esses críticos, mostrado a terroristas uma nova trilha a perseguir.
Parece haver excesso de preocupação. Por enquanto, o melhor modo de conseguir um vírus é procurando-o onde ele ocorre naturalmente. A possibilidade de alterar geneticamente organismos patógenos para torná-los mais letais tampouco é nova. Acredita-se até que os arsenais de certas potências já contenham armas biológicas modificadas.
De todo modo, é conveniente refletir sobre o problema e tentar criar maneiras de dificultar o acesso de terroristas a matérias-primas sensíveis. É preciso, porém, preservar a liberdade de investigação científica. A censura não é e nunca foi a resposta para esse tipo de questão.



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