São Paulo, Sábado, 21 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

SECTARISMO ANTIABORTISTA

Uma menina capixaba de 10 anos foi ontem submetida a uma cirurgia, em ambiente limpo, atendida por profissionais credenciados, com o objetivo de interromper uma gravidez, mais que indesejada, decorrente da inominável violência que é o estupro. Se, após décadas no limbo, não tivesse passado a ter efeitos práticos mais amplos o dispositivo do Código Penal que permite o aborto em certos casos, talvez essa jovem estivesse sujeita a violências ainda maiores.
Por exemplo, essa criança poderia ser vítima de receitas caseiras inomináveis e perigosas para interromper sua gestação. Talvez fosse vítima de gente inescrupulosa e incapaz, que poderia infectá-la, acabar com suas chances futuras de uma gravidez saudável ou mesmo matá-la numa clínica clandestina de aborto.
Hoje, felizmente, hospitais da rede pública podem atender gestantes, em geral as mais pobres, na situação dramática da menina capixaba, desde que obedeçam a normas baixadas pelo governo federal. A sociedade parece aceitar cada vez mais legislação mais tolerante em relação ao tema. Juízes têm autorizado a interrupção da gestação de crianças que não teriam chance nenhuma de sobrevida.
No entanto, um insistente lobby e o deputado Severino Cavalcanti (PPB-PE) querem dar cabo legal dessa tendência mais tolerante; querem fechar as portas dos hospitais públicos para aquelas gestantes. O deputado quer fazer que o Congresso como que revogue o tratamento mais humanitário dessa questão tão dolorosa.
Como esta Folha já observou, em casos de estupro ou da terrível inviabilidade da vida da criança, por que dar a um dogma a força de lei e impor a mães e pais um sofrimento adicional, a eles que devem enfrentar sozinhos uma situação em si já tão penosa? O argumento da defesa da vida e da dignidade humana, no caso do antiabortismo sectário, acaba por incorrer em falta de generosidade e mesmo na violência de submeter outrem a um sofrimento incompatível com a vida digna que dizem prezar.


Texto Anterior: Editorial: CADÁVERES INSEPULTOS
Próximo Texto: Editorial: SEM REMÉDIOS

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.