UOL




São Paulo, quarta-feira, 22 de janeiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula: os trunfos lá fora

CANDIDO MENDES

As ações do assessor para Assuntos Internacionais de Lula, Marco Aurélio Garcia, em relação ao presidente Hugo Chávez dão idéia da multidimensão que se deve aguardar da atuação internacional do novo governo. Vai ao lance lá fora, no nervo da hora, e dá um recado que foge às ações globais lentas e pesadas, como pede o jogo entre o superpoder hegemônico e a periferia, onde emerge um governo cioso da sua diferença. Tem razão Otávio Frias Filho quando mostra a dupla desimportância externa, até hoje, do país, tradicionalmente voltado para as tensões do próprio desenvolvimento interno e preso ao eterno retorno da "boa vizinhança" com Washington.
O PT dispõe hoje de um enorme ativo simbólico e evita a passagem a uma lógica dos fatos consumados do poder exponencial americano. Vivesse Clausewitz, reconheceria hoje, como tantos já observaram, que a estrita política de gestos no cenário internacional é a continuação dos reenvios entre a guerra e a diplomacia. É o que leva às mobilizações das sociedades civis para além dos Estados, em todo o mundo, tão decisivas, em fenômenos como o avanço dos direitos humanos e agora, possivelmente, o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental e, muito provavelmente, as novas negociações sobre o terrorismo. Foram ao jazigo do vocabulário internacional expressões como "Terceiro Mundo", "política de barganha" ou "neutralismo positivo", varridas pela queda do Muro de Berlim. Mas entram em foco reclamos como o da "cidadania" e, sobretudo, o da alternativa.
A recepção de Lula na Argentina deu o teor da estatura emergente da nova liderança brasileira como indicador de uma proeza, que sai do mero sucesso democrático, já por si mesmo extraordinário, como, de saída, reconheceu a imprensa lá fora. Veio ao comando do país um presidente eleito por um número absoluto de votos, que só comportaria, na história contemporânea, a comparação com a primeira vitória de Reagan nos EUA. É o figurino impecável da legitimidade do petista que cria o crédito de expectativa diferente para os mais emperrados ouvidos lá fora. Isso quando o novo governo, com toda a moderação do começo de trajetória, deixa bem clara a busca de outra vertente para os seus rumos políticos que a da inércia neoliberal e aponta, inclusive, a estratégia da valorização do social como ingrediente do próprio desenvolvimento.


O novo governo brasileiro assenta-se devagar no cenário internacional, pondo à mesa a arma da tranquilidade financeira


Bush propôs-se ao auxílio do programa Fome Zero e, com vistas à Alca, pediu realismo ao novo presidente. A linguagem no trato do superpoder começa por uma credencial de respeito ao país que, à margem do Primeiro Mundo, recebeu um mandato para buscar uma alternativa ao modelo econômico de coexistência traçado pela Casa Branca.
Na campanha presidencial, no ano passado, Jospin acolheu Lula, saudando-o como a prova da viabilidade, no mais importante dos países periféricos ocidentais, da definitiva integração da União Européia à visão americana do mercado global. O petista assume em tempo madrasto, que só enfatiza para a vigência do novo caminho o rumo que começa com o juramento no Planalto.
É todo um vendaval de direita que hoje assola as economias européias, só deixando na contramão a Suécia e a Alemanha, da liderança fragilizada de Schröder -que enfrenta a iminência da guerra no Iraque. Vêem-se agora, na França, a revisão da lei de 35 horas, base da guinada social-democrata, o esvaziamento acentuado do capital público e a retomada de legislações discriminatórias contra o trabalho estrangeiro no país. A ascensão de Lula, neste momento, impacta nos principais focos da enorme revisão socialista em processo, que não se imobiliza pelo transe da guerra iminente, e faz do advento do governo brasileiro muito mais do que um evento folclórico ou raro, até democrático, nos trópicos de todas as permissividades, das ditaduras ao sucesso exótico de um operário no poder.
De qualquer forma, há um novo "atentismo" no inconsciente social do dito "outro lado", em que o exílio das esquerdas na Europa atenta à condição de saída desse estado de fato, neoliberal, capaz de se prorrogar indefinidamente pelo estado de guerra difuso, que a invasão consentida do Iraque poderá ampliar no Oriente Médio, alargando o cenário sem volta do conflito palestino. O novo governo brasileiro assenta-se devagar no cenário internacional, pondo à mesa a arma da tranquilidade financeira e econômica nas suas tratativas externas, mas, de logo, também, explorando os espaços minguantes para a validade de seu recado social-democrata.
A evolução imediata das hegemonias em nosso hemisfério pode levar a conflitos, como o risco de derrubada do governo Chávez ou a eventualidade da cooperação americana com o governo Uribe na Colômbia, implicando a eventual intervenção armada no vespeiro do narcotráfico amazônico. Claro, não fugiremos ao fechamento das tenazes da Alca. Mas o caráter hoje nitidamente continental da liderança de Lula dá outro alento ao Mercosul no que se refere à revitalização regional do continente, num Brasil colado à Argentina.
Reuniu-se, em Paris, espontaneamente, nas últimas semanas, um grupo de apoio ao novo presidente formado por algumas das maiores presenças do pensamento e da política européia de nossos dias, como Alain Touraine, Gianni Vattimo, Edgard Morin, Mario Soares, ou Federico Mayor. O mundo das intelligentsias sabe o que divisa e faz da expectativa de sucesso do PT algo que viva as verdadeiras dores do parto da diferença. Os anticlimaxes, as demoras, estão previstos na leitura, lá fora, desse caminho. Por aí mesmo, o realismo pedido por Bush ao Brasil passa pelos trunfos que Lula guarda na manga. Do símbolo já plantado ao sucesso sem pressa que esperam os que, lá fora, sabem que o país não trilhará a via ruidosa das esperanças mortas no ovo.

Candido Mendes, 74, é presidente do senior board do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco e membro da Academia Brasileira de Letras e da Comissão de Justiça e Paz.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Alain Rouquié e Uwe Kaestner: Quarenta anos da amizade franco-alemã

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.