São Paulo, sábado, 22 de março de 2008

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A turbulência na economia norte-americana está conectada a uma crise sistêmica global?

NÃO

As aparências enganam

ROBERTO LUIS TROSTER

A COMPARAÇÃO entre o momento atual e o ocorrido em 1929, antecipando uma crise sistêmica global, aflige cada vez mais.
Na ocasião, o PIB americano caiu pela metade e demorou uma década para voltar ao nível de antes da crise. A recessão dos EUA arrastou a economia de outros países, incluindo a nossa.
Há paralelos entre as duas situações que assombram; entretanto, há diferenças básicas que mostram que a possibilidade de um colapso mundial é remota.
Em outubro de 1929, vivia-se uma fase de crescimento prolongado acompanhada de euforia nos mercados financeiros e elevação no preço das commodities, com efeitos positivos nos países produtores de matérias-primas. Subitamente, o clima da Bolsa norte-americana mudou e os preços das ações despencaram. Registrou-se uma destruição de riqueza financeira expressiva. A pressão inflacionária era positiva, então.
É uma descrição que pode aplicar-se "ipsis litteris" aos EUA de agosto de 2007, com dois agravantes. O primeiro é que a perda de riqueza financeira inicial é significantemente maior: atualmente, estão estimadas em US$ 400 bilhões as perdas no mercado de crédito hipotecário e quase o triplo na desvalorização de imóveis, prejuízos da ordem de um décimo do PIB. O segundo fator, piorando o quadro, é que a integração dos mercados é maior nos dias de hoje, facilitando a propagação de uma crise.
As semelhanças preocupam, mas as diferenças mostram que é uma situação estruturalmente diferente. O primeiro motivo é a atuação diametralmente oposta do Fed. Em 1929, o Fed elevou os juros e adotou a política de que o mercado deveria se ajustar sozinho. O resultado foi uma crise bancária sem precedentes. Os depósitos bancários de milhões de famílias e empresas norte-americanas evaporaram. Isso destruiu a capacidade de consumir e investir da economia americana e a afundou na grande depressão da década de 1930.
Na atual turbulência, não se perdeu sequer um centavo em depósitos bancários de famílias, os prejuízos são todos de grandes aplicadores espalhados pelo mundo e há liquidez abundante de petrodólares e reservas de países emergentes para investir.
Ilustrando o ponto, até agora foram injetados cerca de US$ 100 bilhões em aportes de capital a bancos norte-americanos para amortecer as perdas. A atuação do Fed está sendo contundente para estancar os danos: baixou rapidamente os juros, injetou liquidez nos mercados, interferiu ativamente para evitar a quebra do Bear Sterns e criou linhas de empréstimos para que bancos comprem ativos de instituições em dificuldades.
Outra distinção é a estrutura da economia mundial. Na década de 20, os EUA eram o carro-chefe da economia mundial. Por isso, a recessão americana se propagou aos demais países que dependiam de suas importações. Em 2008, embora continuem importantes, perderam peso relativo e há outros pólos de crescimento, como a Europa e os emergentes, notadamente a China. A solvência desses países, incluindo o Brasil, é melhor.
Os sinais da economia americana são dissonantes. Por um lado, os números no setor de construção civil e de inflação preocupam, mas há pontos positivos, como a dinâmica de outros setores da economia, sua velocidade de ajuste e o fato de que as exportações americanas estão crescendo ao dobro da taxa de importações, corrigindo, assim, o déficit externo.
É fato, a economia norte-americana apresenta problemas e se observarão mais ajustes, como a elevação dos juros pelo Fed no futuro próximo.
Entretanto, a parte maior do estrago já está feita. Agora, deve-se dar tempo ao tempo e esperar pela correção dos desequilíbrios e pela absorção das perdas. A má notícia é que o nervosismo vai continuar. As aparências enganam. Não se deve confundir preocupação com recessão. Como também não se deve achar que o Brasil está totalmente imune.
Mas, tanto lá como aqui, a solução está na aplicação de boa política econômica.


ROBERTO LUIS TROSTER, 57, é doutor em economia pela USP e sócio da Integral Trust. Foi economista-chefe da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), da ABBC e do Banco Itamarati.

robertotroster@uol.com.br

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