São Paulo, segunda-feira, 22 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O naufrágio da ética

JORGE DA CUNHA LIMA


Algumas pessoas afirmam: a televisão está uma droga. Não é bem isso. A televisão virou droga


Na escola pública, de inspiração republicana, o jovem brasileiro recebia, pelo menos até os anos 60, uma boa formação cívica. Essa instrução cívica, que envolvia o patriotismo como prioridade, mesmo nos intervalos das Copas do Mundo, também cuidava da cultura do corpo e da cabeça. Tínhamos aula de ginástica e de canto orfeônico. Desenvolvíamos o patriotismo, a sensibilidade, o gosto, a amizade, a solidariedade, a disputa intelectual como valores necessários à formação do homem. Nem se falava em cidadania, porque isso estava implícito.
Ao lado disso, nas casas, havia a mesa da sala de jantar. Nas casas dos ricos, dos remediados e mesmo dos pobres, a mesa era o centro da formação moral e psicológica da criança. Passei por isso. Quase tudo o que retenho de valores na minha vida aprendi na mesa da sala de jantar. Quando discutimos, repudiamos ou acatamos os princípios expostos por pai, mãe, agregados e irmãos mais velhos, fica um resíduo daquilo que constitui a ética de uma família, que nos acompanha pelo resto da vida.
Hoje a escola pública republicana desapareceu. Há um esforço quantitativo para pôr gente na escola. Não há o mesmo esforço para dotar de conteúdo a ação pedagógica e humana das escolas.
O jovem, que desde o Muro de Berlim já anda órfão de ideologia, hoje se perdeu da civilidade e da ética, que recebia na escola e na mesa de jantar. Não há mais escola. Não há mais mesa. E, quando há mesa e mesmo quando se janta, cada um pega seu prato e vai desfrutá-lo em frente de uma televisão.
Essa constatação singela revela uma consequência trágica: a televisão tornou-se responsável pela formação complementar do homem para a cidadania. Talvez por essa razão a Constituição de 88 crivou as concessões de TV com a responsabilidade de produzir e divulgar os valores da família e da sociedade, como condição de sua própria existência.
De fato, para 150 milhões de brasileiros, a televisão, sobretudo a comercial, gratuita e aberta, tornou-se a fonte de inspiração do gosto, da sexualidade, da violência, da sensibilidade, dos hábitos, dos desejos e do consumo. Enfim, todos esses elementos ou valores, necessários à formação do caráter e do comportamento, são transmitidos o tempo todo para todos os cidadãos e, de preferência, ao mesmo tempo, sob a forma inexpugnável do entretenimento. A televisão viciou o homem com o entretenimento. Por isso mesmo algumas pessoas afirmam, com ingenuidade: a televisão está uma droga. Não é bem isso. A televisão virou droga.
O mercado persegue essa dependência universal, que precisa seduzir a todos com suas mensagens, ainda que à custa da qualidade, reduzida a níveis ínfimos. E o homem perde sua fidelidade, substitui os canais, substitui os partidos, substitui os valores e substitui a própria lealdade. A grande escola dessa televisão imposta pelo Ibope é ministrada na programação dos domingos. O doutorado são os "reality shows". De início, pensei que isso fosse um fenômeno brasileiro, ainda que dispensável para uma televisão que sabe produzir um padrão de qualidade mundialmente reconhecido. Pois é um fenômeno nacional, exacerbado pela crise financeira, derivada da crise dos 30 segundos. Diminuiu a publicidade, aumentou a ferocidade na conquista da publicidade.
Mas o fenômeno é mundial, até mesmo em dimensões iníquas. Recentemente, em Cannes, no MIP TV, um conferencista se propôs oferecer uma grande alternativa para esse mercado em crise, o "social reality show". Consiste no seguinte: escolhe-se um cenário de iniquidades, com a condição de que as mesmas tenhas sido produzidas pelo homem, não pela natureza. Assim, não vale furacão, terremoto. O mal precisa ter sido produzido pela sociedade.
Uma boa equipe de televisão vai, por exemplo, para Jenin. Lá, procura uma mãe que tenha perdido a casa e pelo menos um filho. Procura aquele cidadão cuja filha morta ficou três dias em seu braço, por ele não poder enterrá-la. Procura alguém que tenha sido mutilado gravemente. Reúne a turma toda. E faz a catarse do sofrimento produzido, durante uns 15 dias. Depois, a equipe vai para a África procurar alguma cidade onde pelo menos 30% da população tenha morrido de Aids.
O conferencista foi muito aplaudido pelos presentes.
Isso me dá a exata medida de que não basta a alternativa de uma televisão pública consciente e bem intencionada, embora isso seja indispensável para criar um novo paradigma. Mas é preciso que a sociedade perceba que há um processo de destruição da cabeça do brasileiro, mais nocivo do que a inflação e com muito mais riscos do que a instabilidade política e financeira.
Sem que se perceba, essa ética pragmática da televisão também acabou por inspirar as decisões políticas. As eleições de 2002 vão ficar na história como o maior espetáculo de incoerência e desorientação praticado após a democratização. Siglas, candidatos e consultores estão no mercado com o mesmo descaramento e frieza de uma geladeira. Ninguém é fiel a uma idéia, deixando, portanto, de ser fiel a si mesmo. Os quadros eleitorais são cubistas: olhar de um, nariz do outro e o cérebro do Ibope. Uma nação só é capaz de se erguer e reerguer a partir dos seus quadros, a partir de uma sociedade com um mínimo de exigência ética e moral.
Essa exigência não pode ser dirigida apenas às consequências danosas de sua falta, como fazem, com zelo, a mídia e as promotorias. Essa exigência precisa cuidar do processo e das causas danosas que separaram a sociedade dos seus ideais, da ética, da moral e dos valores civis da república. Essas ausências, sobretudo das elites, é que impossibilitam uma nação de se situar diante das crises. E crises não faltam. A droga cooptou os grotões da pobreza, articulando-a como força auxiliar do tráfico, esse negócio ainda mais trêfego do que o sistema financeiro internacional. Esses mesmos grotões que foram secularmente negligenciados porque nunca ofereceram perigo tão real como hoje.
A falta de uma definição de política pública tributária, cultural, produtiva e partidária não é apenas o resultado de uma negligência legislativa. Resulta também da falta de exigência de uma sociedade que se acostumou a contemplar apenas o espetáculo das consequências produzido pelo espetáculo da notícia de cada dia. Se não percebermos a destruição da cabeça do brasileiro promovida pela televisão, dificilmente conseguiremos diagnosticar e combater as causas desse naufrágio da ética.
Jorge da Cunha Lima, 70, jornalista e escritor, é diretor-presidente da Fundação Padre Anchieta e presidente da Associação Brasileira das Emissoras Públicas Educativas e Culturais.



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