São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

A "Ave-Maria" de Schubert

RIO DE JANEIRO - Era difícil levar uma namorada, de ofício ou de circunstância, para os finalmente que interessavam. Não havia motéis, mas espeluncas desconfortáveis e broxantes. Quem não era rico e não tinha direito àquilo que os entendidos chamavam de "garçonnière", se espalhava pelos quartos alugados de cafetinas ou homossexuais desativados que alugavam por hora ou, em alguns casos, por fração de hora.
Deu-se que um amigo meu levou uma namorada zero quilômetro para um desses covis, numa rua manjada, que cheirava de longe a secreções igualmente manjadas. Vencidas as resistências, à custa de muita saliva -que é igualmente uma secreção-, foram abertos os trabalhos de praxe.
O apartamento era quarto-e-sala, o dono, um rapaz magricela, que vivia com um policial que só chegava à noite, alugava o quarto durante o dia a cavalheiros de fino trato para pagar aulas de violino, que cismara de tocar. Era um artista desgarrado, e ainda bem que escolhera o violino, se fosse bateria, poderia ser pior, mas, naquele caso específico, certamente seria melhor.
Foi uma carnificina terrível. A Guerra do Peloponeso, as Púnicas, a dos Cem Dias, a batalha de Stalingrado, nenhuma delas se ombrearia com a luta corporal para convencer a namorada à consumação dos fatos consumados. E, quando tudo estava pronto, vencidas as últimas resistências, eis que adentra no quarto o som esfarrapado do violino tocando a "Ave-Maria" de Schubert.
Por Júpiter! A moça deu um pulo, era a voz de Deus e da decência que a salvava do mau passo. Vestiu-se chorando, deixou o meu amigo literalmente na mão. Resignado, mas nem tanto, o jeito foi esculhambar com o candidato a Paganini que, apatetado, na sala ao lado, não entendia o que estava se passando: "Mas logo com uma "Ave-Maria'? Não podia ser a valsa da "Viúva Alegre'?".
Encabulado, o rapaz respondeu: "É a única música que sei tocar até o fim".


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