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OTAVIO FRIAS FILHO
Máquinas
Deve estrear em breve, nos cinemas brasileiros, a versão hollywoodiana do livro "Eu, Robô" (1950),
clássico da ficção científica escrito por
um mestre do gênero, o russo-americano Isaac Asimov. Sabe-se que bons
livros quase sempre dão maus filmes
(e vice-versa). E que versões para o cinema quase nunca alcançam as expectativas dos leitores da obra.
Antes que o vendaval publicitário faça de Asimov mais uma vítima do justiceiro Will Smith, protagonista do filme, convém recordar o livro, que está
esgotado no Brasil (prepara-se uma
reedição para lançamento simultâneo
ao do filme). São contos situados num
futuro mais ou menos remoto, quando a humanidade já disporia de autômatos para a execução de todo tipo de
tarefas físicas e intelectuais.
No livro, a fim de evitar surpresas
desagradáveis, fica estabelecido, desde
o início da era robótica, que todos os
autômatos teriam implantados três
comandos no âmago de seu software.
O primeiro os impede de fazer mal a
seres humanos.O segundo os impede
de desobedecer humanos, exceto em
respeito ao primeiro comando. O terceiro os impede de fazer mal a si mesmos, exceto em obediência aos outros
dois comandos.
Todos os contos -o filme se resume
a um deles- desenvolvem situações
em que um impasse é produzido por
causa de contradições na aplicação
das "três leis da robótica". Não se trata
de defeitos técnicos, mas de colapso
lógico das leis definidas com tanta elegância -o que faz do livro ao mesmo
tempo um folhetim de suspense futurista, um estudo psicológico sobre a
moral e até uma ilustração sobre as
brechas de qualquer sistema jurídico.
A ficção científica moderna nasceu
com o "Frankenstein" (1818), da inglesa Mary Shelley, que trata, no fundo,
do mesmo tema de Asimov, a criatura
que se volta contra o criador. O gênero
conservou a tradição romântica de
suas origens: os pesadelos da razão geram monstruosidades, a ambição humana de igualar-se a Deus e reinventar a natureza é punida.
No século 20, dominado pela polarização entre direita e esquerda, as fantasias da FC se politizaram também.
Uma literatura de inspiração anticomunista ameaçava seus leitores com
um futuro frio, "desumano", numa
sociedade totalitária em que os indivíduos seriam meras peças. Outra vertente projetava as estruturas do capitalismo nesse futuro maquinal, como
no "2001", de Arthur Clarke, reinventado no cinema por Kubrick.
Hoje, as ideologias políticas estão
desarticuladas, se é que não desapareceram para sempre. Embora robôs
ainda não façam parte do cotidiano, a
presença das máquinas no dia-a-dia
só faz aumentar. Os delírios da imaginação futurista não se cumpriram,
mas sua revelação literária permanece
viva e perturbadora: a de que somos
nós mesmos as máquinas de que falam esses livros e filmes.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
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