São Paulo, quinta-feira, 22 de julho de 2004

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OTAVIO FRIAS FILHO

Máquinas

Deve estrear em breve, nos cinemas brasileiros, a versão hollywoodiana do livro "Eu, Robô" (1950), clássico da ficção científica escrito por um mestre do gênero, o russo-americano Isaac Asimov. Sabe-se que bons livros quase sempre dão maus filmes (e vice-versa). E que versões para o cinema quase nunca alcançam as expectativas dos leitores da obra.
Antes que o vendaval publicitário faça de Asimov mais uma vítima do justiceiro Will Smith, protagonista do filme, convém recordar o livro, que está esgotado no Brasil (prepara-se uma reedição para lançamento simultâneo ao do filme). São contos situados num futuro mais ou menos remoto, quando a humanidade já disporia de autômatos para a execução de todo tipo de tarefas físicas e intelectuais.
No livro, a fim de evitar surpresas desagradáveis, fica estabelecido, desde o início da era robótica, que todos os autômatos teriam implantados três comandos no âmago de seu software. O primeiro os impede de fazer mal a seres humanos.O segundo os impede de desobedecer humanos, exceto em respeito ao primeiro comando. O terceiro os impede de fazer mal a si mesmos, exceto em obediência aos outros dois comandos.
Todos os contos -o filme se resume a um deles- desenvolvem situações em que um impasse é produzido por causa de contradições na aplicação das "três leis da robótica". Não se trata de defeitos técnicos, mas de colapso lógico das leis definidas com tanta elegância -o que faz do livro ao mesmo tempo um folhetim de suspense futurista, um estudo psicológico sobre a moral e até uma ilustração sobre as brechas de qualquer sistema jurídico.
A ficção científica moderna nasceu com o "Frankenstein" (1818), da inglesa Mary Shelley, que trata, no fundo, do mesmo tema de Asimov, a criatura que se volta contra o criador. O gênero conservou a tradição romântica de suas origens: os pesadelos da razão geram monstruosidades, a ambição humana de igualar-se a Deus e reinventar a natureza é punida.
No século 20, dominado pela polarização entre direita e esquerda, as fantasias da FC se politizaram também. Uma literatura de inspiração anticomunista ameaçava seus leitores com um futuro frio, "desumano", numa sociedade totalitária em que os indivíduos seriam meras peças. Outra vertente projetava as estruturas do capitalismo nesse futuro maquinal, como no "2001", de Arthur Clarke, reinventado no cinema por Kubrick.
Hoje, as ideologias políticas estão desarticuladas, se é que não desapareceram para sempre. Embora robôs ainda não façam parte do cotidiano, a presença das máquinas no dia-a-dia só faz aumentar. Os delírios da imaginação futurista não se cumpriram, mas sua revelação literária permanece viva e perturbadora: a de que somos nós mesmos as máquinas de que falam esses livros e filmes.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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