São Paulo, segunda-feira, 23 de fevereiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O pequeno príncipe

RIO DE JANEIRO - Podia ter sido melhor ou pior, mas era importante pra burro. Tanto que os jornais, sem exceção, grandes, pequenos ou mais menos, tinham um cara especializado na festa, dando tempo integral durante o ano todo, permanentemente antenado com o Carnaval que havia passado e com o Carnaval do ano seguinte.
É evidente que, na época do pique, ou seja, durante o próprio Carnaval, ele se transformava num imperador, num Petrônio Árbitro, num personagem transcendental do qual todos dependiam, o jornal em particular, a cidade inteira no geral.
Conheci os escombros dessa era e fui amigo de alguns desses seres míticos, que sabiam tudo sobre as músicas e os enredos das grandes sociedades (que eram os blocos daquele tempo) e, sobretudo, tinham acesso fácil aos segredos difíceis sobre bailes clandestinos e farras igualmente clandestinas.
Todos usavam um pseudônimo extravagante. Havia o K.Peta, o K.Rapeta, o K.Noa, o Peru dos Pés Frios, um dos mais deliciosos apelidos da história universal. E havia o mais famoso deles, o A.Zul, que se chamava Arthaligídio Agostinho da Luz e entrou num romance que escrevi por aí, tentando penetrar na quase memória de um menino triste que se tornou num homem mais triste ainda.
Era magro, elegante, usava piteira para fumar o cigarro "Yolanda ovais". Parece que havia sido tísico, doença comum daquele tempo. Num Carnaval distante, o pai me deixou com ele na Redação do "Jornal do Brasil". Era em frente ao prédio mais notável da avenida que os blocos faziam evoluções. A.Zul era o Adão que dava nome às coisas, todos faziam tudo para deslumbrá-lo.
Naquele ano, A.Zul me botou no colo e me levou para a sacada de onde mandava chover ou fazer sol. Eu me senti um delfim, um príncipe infante com direito à sucessão. Foi o instante em que mais perto me senti do poder, o poder que faz o povo parecer feliz.


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