São Paulo, quarta-feira, 23 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

LEONEL BRIZOLA

O último caudilho

MARCO ANTONIO VILLA

Anteontem morreu o último caudilho da história do Brasil. Teve admiradores fiéis e inimigos mortais. Com o engenheiro Leonel de Moura Brizola desaparece também o trabalhismo getulista, sempre tão atacado pela direita e pela esquerda. Brizola foi o derradeiro representante do que a sociologia chamou de "populismo".
Nacionalismo, presença do Estado na economia, legislação de proteção ao trabalhador, desenvolvimentismo, atenção à educação foram idéias repetidas "ad nauseam" entre os anos 1930 e 1964. Porém, muito mais que idéias, foram programas colocados em prática que levaram o país à industrialização e à formação da moderna sociedade brasileira. Ao insistir nessas propostas, justamente no momento em que a elite política brasileira, hegemonizada pelo pensamento antigetulista, não mais conseguia ter idéias próprias, Brizola transformou-se em um ser deslocado, um dinossauro, como foi chamado, pois não sucumbiu ao discurso dominante.


Com a morte de Leonel Brizola, um raro político de idéias próprias, aumentou a pobreza do debate político brasileiro


Insistia teimosamente em recolocar no debate político temas que eram considerados superados, mesmo o país estando havia 20 anos paralisado, sem nenhuma mostra de recuperação econômica consistente. Dada a hegemonia do discurso e da prática conservadores, Brizola somente incomodava os donos do poder. Não era mais considerado um adversário a levar em conta. Politicamente era um morto-vivo.
O grande momento da vida política do engenheiro foi a Campanha da Legalidade: entre a renúncia de Jânio Quadros, a 25 de agosto de 1961, e o retorno do vice-presidente João Goulart ao território nacional. Dias e noites que abalaram o Brasil, ameaçado por um golpe militar direitista. O então governador do Rio Grande do Sul mobilizou todo o país em defesa da Constituição e da democracia, comportamento que, infelizmente, não manteve nos idos de 1963/ 64. Porém, quando retornou do exílio de 15 anos, estava convicto da necessidade de mudanças -e sempre pelo caminho do voto.
Em 1982 venceu heroicamente, contra tudo e contra todos, as eleições para o governo do Estado do Rio de Janeiro -isso depois de haver perdido a sigla PTB para Ivete Vargas, que agia a soldo do Palácio do Planalto. Sete anos depois teve, nas eleições presidenciais, consagradoras votações no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Conseguiu um fato raro: transferiu seus votos no segundo turno para o candidato da Frente Brasil Popular, Luiz Inácio Lula da Silva. No ano seguinte, venceu novamente as eleições para o governo do Rio de Janeiro. A partir dali, foram sucessivas derrotadas, até a última, em 2002: quinto lugar nas eleições para o Senado como representante dos fluminenses.
Apesar da origem sulista e de ter sido um vitorioso nas eleições gaúchas -foi sucessivamente deputado estadual, deputado federal, prefeito de Porto Alegre e governador-, acabou sendo no Rio de Janeiro que se consagrou nas urnas e que voltou para morrer. Depois da queda da ditadura, todos os prefeitos do Rio passaram pelo batismo do brizolismo, caso único na história recente do Brasil (e mais expressivo, se levarmos em conta a politização do eleitorado carioca). Mas o curioso é que esses prefeitos tiveram enormes dificuldades de governar mantendo-se no partido do engenheiro, o PDT.
Em quase 60 anos de política, Brizola destacou-se pela coragem e pela insistência em temas programáticos, sempre recordando a tradição getulista. Sua determinação e coragem, em um país marcado por uma elite política conciliadora, foi exemplar. A defesa intransigente do ideário varguista diferenciou-o dos políticos brasileiros, sempre à procura da última novidade no exterior.
Daí a estranheza e a inadaptação a um ambiente contemporâneo marcado pela falta de iniciativa política, pelo descrédito no futuro do país e pelo atrelamento a políticas nocivas ao interesse nacional -pois, diferentemente do que imaginam os sábios de plantão, o século 21, tal qual o precedente, é marcado pelo crescente nacionalismo, inclusive das grandes potências e dos grandes blocos econômicos. Assim, a vaia recebida pelo presidente Lula no velório não foi uma manifestação de destempero dos presentes, mas a resposta sincera a uma deslealdade programática e eleitoral (lembremo-nos de que, em duas eleições presidenciais, Brizola apoiou Lula no segundo turno, e em outra foi seu companheiro de chapa).
No final da vida, Brizola estava sozinho. Não conseguiu realizar o sonho de retomar a sigla PTB nem chegou à presidência da República. Seu partido quase que desapareceu. Suas idéias eram motivo de chacotas. Seus principais liderados o haviam abandonado. Restava um ou outro político de expressão. Terminou cercado de aventureiros, oportunistas, que o ouviam com enfado, sedentos para controlar o partido no jogo pequeno dos interesses eleitorais. O velho caudilho estava só. E derrotado.
Numa carta a Oswaldo Aranha, Getúlio Vargas escreveu: "Vivemos numa pobreza franciscana em matéria de idéias políticas". Com a morte de Leonel de Moura Brizola, um raro político de idéias próprias, aumentou a pobreza do debate político brasileiro.

Marco Antonio Villa, 48, historiador, é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos e autor de "Jango, um Perfil (1945-1964)" (editora Globo).


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