São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Cena de aeroporto

RIO DE JANEIRO - O vôo atrasou. Dez minutos apenas. Muitos dez minutos depois, os passageiros ficaram irritados, menos a velhinha que, sentada ao lado do marido, este irritadíssimo, fazia crochê.
Numa bolsa de plástico estava o novelo de linha branca. Os óculos na ponta do nariz, a página arrancada de alguma revista especializada, a velhinha permanecia imperturbável, os dedos guiando a agulhinha, os lábios como se estivessem rezando, na verdade, apenas contando os pontos de cada fileira. Parecia em início de trabalho, volta e meia parava e consultava a receita que estava seguindo. Nem bola para o atraso do vôo. Dava a impressão de que ficaria frustrada se de repente fosse chamada para embarcar. O clima diante do portão 15 ficara tenso, e ela nem estava ali, perdida em dar aqueles pontos complicados.
Pensei em minha mãe, em minhas tias, que também faziam crochê. E me lembrei de Goebbels, o ministro da Propaganda do nazismo. Uma de suas frases mais bem-sucedidas em favor do regime de Hitler, antes da guerra, foi espalhada pelo rádio e por cartazes em todas as ruas: "A mulher alemã voltou a fazer crochê".
Seria um símbolo de paz, de vida mansa e útil, um retorno ao país ideal, doméstico. Bem verdade que pouco depois a mulher alemã largou o crochê e foi trabalhar na indústria de guerra, ou tomar conta dos pavilhões femininos dos campos de concentração.
Foi nisso tudo que pensei, na mãe, nas tias, no retorno tranqüilo das mulheres de todo o mundo que faziam crochê e deixavam de fazer outras coisas.
O vôo realmente demorou. Esqueci o relógio e, sentado em frente à mulher que fazia crochê, fui contando as fileiras que iam se somando a outras. Fileiras que foram crescendo, do colo dela caíram ao chão. O trabalho rendia. De dez em dez minutos, avisavam que o vôo atrasaria dez minutos. Me deu vontade de aprender a fazer crochê.


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