UOL




São Paulo, quarta-feira, 24 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Natal sob Lula e sob Bush

LEONARDO BOFF

Cada festa de Natal ressuscita ancestrais arquétipos de paz, familiaridade e benquerença entre todos os seres humanos, até com os elementos da natureza. Por um momento, fazemos de conta que no mundo não há mais guerras, nem ódios, nem separações, nem sequer a luta dura da vida. E nos abraçamos e nos desejamos boas-festas e nos mostramos afáveis, suaves e alegres. Fica até mais fácil fazer do distante um próximo e do próximo um irmão e uma irmã. Esse é o encanto perene do Natal. E haverá sempre a atmosfera feliz daquela noite sagrada enquanto existir imaginação, sonho e utopia, a singela utopia de paz cotidiana.
Essa paz, em nossa cultura de matriz cristã, está ligada ao nascimento de Jesus, sobre o qual as multidões de anjos cantaram "glória a Deus nas alturas e paz na terra às pessoas por Ele amadas". O aparecimento de Jesus, chamado de Príncipe da Paz, trouxe, segundo relatos míticos, assumidos pela liturgia da Igreja Católica, uma comoção cósmica. Rezam os textos: "Quando tudo se quedava num profundo silêncio e a noite estava no meio de seu curso, então, de repente, fez-se grande clarão no céu e Deus baixou à terra. Então, as folhas que farfalhavam pararam mortas, o vento que sussurrava cessou, o galo que cantava deteve-se no meio de seu canto, as águas do riacho que corriam estancaram, as ovelhas que pastavam ficaram imóveis, o cajado que o pastor erguia ficou petrificado no ar, então nesse momento tudo silenciou, foi interrompido e ficou suspenso -nasceu Jesus Cristo, nosso Salvador".


Haverá sempre a atmosfera feliz daquela noite sagrada enquanto existir imaginação, sonho e utopia


Jamais renunciaremos a esse sonho de paz humana e cósmica e lutaremos para que se concretize. Mas temos diante de nós a nua e crua realidade. Que significa celebrar o Natal no Brasil sob Lula e, no mundo globalizado, sob Bush?
Todos viemos embalados pela esperança política suscitada por Lula, de mudanças fundamentais que realizassem os sonhos dos humilhados e ofendidos de nossa história. Depois de um ano, todos os índices sociais pioraram, especialmente a violência e o desemprego. Morreu a esperança? Ainda não, porque ela é sempre a última que morre e porque ainda há chances de vê-la realizada. Lógico, havia um dilúvio e no lugar da arca de Noé existia um Titanic afundando. Fez-se todo o esforço para transformá-lo num transatlântico.
Agora todos esperam, e como esperam, que ele ganhe rumo e propicie mudanças que tragam desafogo com políticas sociais e populares. Especialmente que traga uma atmosfera de menos violência, porque a paz social mesmo é ainda impossível onde persiste o inferno da injustiça social secular.
Essa esperança tem que ser mais que política, para não degenerar em frustração. E aqui o povo, sabidamente místico e religioso, tem lições a nos dar. Ele conjuga a esperança política com a esperança teologal, quer dizer, com a esperança n" Aquele que dá a coragem para realizar todo o possível e ainda para tentar um pouco do impossível.
Sendo assim, dá para celebrar discretamente o Natal sob Lula, desde que seja um Natal de esperança que significa, como diz o apóstolo Paulo, "a convicção das realidades que ainda não se vêem". Não se vêem agora, mas que têm de ser vistas proximamente. Senão para que mudar e em quem esperar?
Diferente, entretanto, é o Natal sob George W. Bush e seus aliados. Ele tem se comportado como os reis absolutistas do século 17, que se pretendiam ligados diretamente a Deus, sem ter que dar contas a ninguém nem respeitar leis e tratados. A ação unilateral e autoritária de Bush e da coalizão na guerra contra o Iraque se fez ao arrepio da ONU, das normas internacionais e do clamor da opinião pública mundial. Bush deu a entender claramente: "Os interesses norte-americanos estão acima da humanidade, somos a potência mais forte da terra, por isso temos o direito de decidir o destino do mundo".
Bush é um fundamentalista cristão e se imagina um enviado de Deus para fazer triunfar o bem contra o mal. Usa o nome de Deus para justificar o que Deus não quer, a guerra. Prepotência e arrogância se conjugaram nele para conduzir uma guerra ilegal e imoral com o objetivo de neutralizar armas de destruição em massa e prender ou eliminar Saddam Hussein, que presumivelmente abrigava terroristas internacionais. Tudo mentira e falsidade. Fez-se uma guerra devastadora, ocorreu a invasão e ocupação. Não foram identificadas as ditas armas, não se encontraram provas de que o Iraque protegesse terroristas. E agora se capturou Saddam Hussein, humilhando-o com fotografias ridículas.
Hoje sabemos que essa guerra obedecia a uma geoestratégia bem definida, de criar uma zona pró-Ocidente. O Iraque e o Afeganistão funcionariam como colchão entre o Irã e a Síria, imunizando Arábia Saudita e os Emirados Árabes de mudanças contra o Ocidente.
Bush é bisonho, pois sabe que as guerras trazem mais problemas do que os resolvem e que a humilhação de um povo apenas alimenta raiva -que reforça a espiral da violência futura. Bush representa hoje o maior risco para humanidade. Não há esperança política sob Bush e seus sócios belicistas. Resta-nos a esperança teológica, aquela dos Salmos: "Ri-se Aquele que habita no céu vendo os reis com seus planos e zomba deles, pois irá derrubá-los". Oxalá os eleitores sejam o meio que Deus usará para afastá-lo.
Estamos sem esperança?
Um paciente de um centro psiquiátrico de Araxá (MG) me devolveu leve esperança. Alegre, mostrou-me pedaço de madeira onde escreveu em pirografia: "Sempre que nasce uma criança, Deus mostra que ainda confia na humanidade". Cada criança que nasce hoje bem pode representar o Menino que foi chamado a "Nossa Esperança". Por aí podemos esperar e ter paz possível.

Leonardo Boff, 64, teólogo e escritor, é professor emérito de ética da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e autor, entre outras obras, de "Natal, a Jovialidade e a Humanidade de Deus" (Vozes, 2002).


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Milú Villela: A educação é a solução

Próximo Texto:
Painel do leitor

Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.