São Paulo, quarta-feira, 24 de dezembro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Natal sob Lula e sob Bush
LEONARDO BOFF
Jamais renunciaremos a esse sonho de paz humana e cósmica e lutaremos para que se concretize. Mas temos diante de nós a nua e crua realidade. Que significa celebrar o Natal no Brasil sob Lula e, no mundo globalizado, sob Bush? Todos viemos embalados pela esperança política suscitada por Lula, de mudanças fundamentais que realizassem os sonhos dos humilhados e ofendidos de nossa história. Depois de um ano, todos os índices sociais pioraram, especialmente a violência e o desemprego. Morreu a esperança? Ainda não, porque ela é sempre a última que morre e porque ainda há chances de vê-la realizada. Lógico, havia um dilúvio e no lugar da arca de Noé existia um Titanic afundando. Fez-se todo o esforço para transformá-lo num transatlântico. Agora todos esperam, e como esperam, que ele ganhe rumo e propicie mudanças que tragam desafogo com políticas sociais e populares. Especialmente que traga uma atmosfera de menos violência, porque a paz social mesmo é ainda impossível onde persiste o inferno da injustiça social secular. Essa esperança tem que ser mais que política, para não degenerar em frustração. E aqui o povo, sabidamente místico e religioso, tem lições a nos dar. Ele conjuga a esperança política com a esperança teologal, quer dizer, com a esperança n" Aquele que dá a coragem para realizar todo o possível e ainda para tentar um pouco do impossível. Sendo assim, dá para celebrar discretamente o Natal sob Lula, desde que seja um Natal de esperança que significa, como diz o apóstolo Paulo, "a convicção das realidades que ainda não se vêem". Não se vêem agora, mas que têm de ser vistas proximamente. Senão para que mudar e em quem esperar? Diferente, entretanto, é o Natal sob George W. Bush e seus aliados. Ele tem se comportado como os reis absolutistas do século 17, que se pretendiam ligados diretamente a Deus, sem ter que dar contas a ninguém nem respeitar leis e tratados. A ação unilateral e autoritária de Bush e da coalizão na guerra contra o Iraque se fez ao arrepio da ONU, das normas internacionais e do clamor da opinião pública mundial. Bush deu a entender claramente: "Os interesses norte-americanos estão acima da humanidade, somos a potência mais forte da terra, por isso temos o direito de decidir o destino do mundo". Bush é um fundamentalista cristão e se imagina um enviado de Deus para fazer triunfar o bem contra o mal. Usa o nome de Deus para justificar o que Deus não quer, a guerra. Prepotência e arrogância se conjugaram nele para conduzir uma guerra ilegal e imoral com o objetivo de neutralizar armas de destruição em massa e prender ou eliminar Saddam Hussein, que presumivelmente abrigava terroristas internacionais. Tudo mentira e falsidade. Fez-se uma guerra devastadora, ocorreu a invasão e ocupação. Não foram identificadas as ditas armas, não se encontraram provas de que o Iraque protegesse terroristas. E agora se capturou Saddam Hussein, humilhando-o com fotografias ridículas. Hoje sabemos que essa guerra obedecia a uma geoestratégia bem definida, de criar uma zona pró-Ocidente. O Iraque e o Afeganistão funcionariam como colchão entre o Irã e a Síria, imunizando Arábia Saudita e os Emirados Árabes de mudanças contra o Ocidente. Bush é bisonho, pois sabe que as guerras trazem mais problemas do que os resolvem e que a humilhação de um povo apenas alimenta raiva -que reforça a espiral da violência futura. Bush representa hoje o maior risco para humanidade. Não há esperança política sob Bush e seus sócios belicistas. Resta-nos a esperança teológica, aquela dos Salmos: "Ri-se Aquele que habita no céu vendo os reis com seus planos e zomba deles, pois irá derrubá-los". Oxalá os eleitores sejam o meio que Deus usará para afastá-lo. Estamos sem esperança? Um paciente de um centro psiquiátrico de Araxá (MG) me devolveu leve esperança. Alegre, mostrou-me pedaço de madeira onde escreveu em pirografia: "Sempre que nasce uma criança, Deus mostra que ainda confia na humanidade". Cada criança que nasce hoje bem pode representar o Menino que foi chamado a "Nossa Esperança". Por aí podemos esperar e ter paz possível. Leonardo Boff, 64, teólogo e escritor, é professor emérito de ética da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e autor, entre outras obras, de "Natal, a Jovialidade e a Humanidade de Deus" (Vozes, 2002). Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Milú Villela: A educação é a solução Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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