São Paulo, quarta-feira, 25 de maio de 2005

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Conveniência política

JORGE ZAVERUCHA

Publiquei na Folha, em 26/4, artigo discordando do eminente senador Marco Maciel. Ao contrário dele, acredito que a transição espanhola para a democracia foi mais bem sucedida que a brasileira. Boa parte do nosso aparato coercitivo do Estado se mantém autoritário, mesmo com incontestáveis avanços na competição eleitoral. A essa singular situação, que já perdura 20 anos, chamo, dentre outros motivos, de semidemocracia.
O ex-ministro da Justiça Saulo Ramos discordou da minha avaliação. Não precisava resvalar para ataques pessoais contra o "articulista pernambucano". Até fez surpreendente uso da expressão "gorilas da ditadura". Linguajar outrora utilizado por certos segmentos da esquerda. Também investiu contra os professores universitários, acusando-os de deturparem a história do Brasil. A responsabilidade é exclusivamente minha se escrevo "bobagens". Não deveria tomar a parte pelo todo.
Nenhuma palavra do advogado sobre a saída do ministro Viegas. Ou reflexão sobre o caso espanhol. Talvez minha visão, pouco idílica, sobre seu ex-chefe o tenha irritado. É oportuno ressaltar que, numa democracia, conta não só o conteúdo mas também a forma pela qual os argumentos são colocados.
Alguns esclarecimentos. A afirmação de Ulysses: "Segui as instruções do meu jurista. O meu "Pontes de Miranda" [general Leônidas] estava lá, fardado, e com a espada me cutucando que quem tinha de assumir era o Sarney" está no artigo de Ronaldo Costa Couto ("Para o povo, esperança era o outro nome de Tancredo"), publicado na Folha (15/3). Se isto não se chama intimidação...
Ulysses teria insultado os membros de Junta Militar; concorreu, em 1974, como "anticandidato" à Presidência da República; e chamou o ex-presidente Geisel de "Idi Amim branco". Geisel foi o grande conselheiro militar de Tancredo. Portanto, Ulysses era nome inaceitável pela caserna. Não seria então, com a morte de Tancredo, que chegaria ao poder.


O problema de quem "vive por dentro a história" é a capacidade de enxergar a árvore, mas não a floresta

Jamais afirmei ter ouvido algo de Antonio Carlos Magalhães. Reproduzi sua declaração sobre Leônidas, a quem definiu como "o jovem jurista militar". Vide "A Tribuna da Imprensa" ("Senado lembra 20 anos da democratização", 16/3). Curioso é que, nessa sessão do Senado, os principais oradores foram políticos aliados do governo militar até o último suspiro do regime. Aos ex-"peemedebistas históricos" foi reservado o papel de coadjuvantes. E não se ouviu maiores protestos por parte da base parlamentar do atual governo.
Sugiro leitura do livro de Ricardo Noblat, "Céu dos Favoritos", em especial o capítulo "A ameaça dos Urutus". Lá há detalhes sobre a pressão militar em favor da manutenção do presidencialismo e pelos cinco anos de mandato. Esta não é a única variável explicativa para a vitória de Sarney. Poderia ter ocorrido uma negociação entre os políticos, caso parte deles não desse como certa a vitória do Parlamentarismo. Por exemplo: continuação do presidencialismo em troca da redução do mandato para quatro anos.
E por falar em mandato, a Constituição então vigente estipulava seis anos para o presidente. É de conhecimento público que Tancredo anunciou seu desejo de governar por quatro anos. Destoando do manifesto que deu origem à Aliança Democrática (7/8/84). Pelo manifesto, seria restabelecida imediatamente eleição direta para presidente da República.
Ressalte-se a diferença de comportamento entre Sarney e Suárez, ambos egressos das hostes autoritárias do "ancién" regime. Suárez, logo após ter sido eleito pelas cortes franquistas, começou a organizar eleições diretas. Já Sarney, achando pouco quatro, trabalhou, e como, pelo quinto ano de mandato.
Sobre quem deveria suceder Tancredo, o advogado apresenta uma das possíveis interpretações jurídicas. Só que ele não detém o monopólio do escólio constitucional. O próprio Sarney, em seu livro de memórias, escreveu que "o ministro Moreira Alves, presidente do Supremo Tribunal Federal, convocou uma reunião de urgência, secreta, de toda a corte para examinar o assunto. Resolveram, contra os votos dos ministros Luís Galloti e Sidney Sanches que, na forma da Constituição, cabia ao vice-presidente assumir o governo" (http://noblat.blig.ig.com.br).
Havendo divergência jurídica sobre quem deveria suceder Tancredo, cai por terra o argumento de a única solução ser a assunção de Sarney. Não é preciso ser um "curioso detetive da história" nem "ter vivido por dentro a história" para chegar a esta conclusão. O problema, muitas vezes, de quem "vive por dentro a história" é a capacidade de enxergar a árvore, mas não a floresta.
Sarney corroborou a influência do general Leônidas em artigo publicado nesta Folha (21/1) com o sugestivo título de "Boa noite, presidente". Referiu-se ao cumprimento que lhe foi dado pelo general Leônidas, às 3h, no dia de sua posse. Só assim foi dormir convicto de que assumiria o poder. "Leônidas foi o ponto chave (ênfase minha). A ele deve o país, em grande parte, a tranqüilidade da transição", escreveu o presidente. É o que eu tinha a comentar.

Jorge Zaverucha, 49 anos, doutor em ciência política pela Universidade de Chicago, é professor da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador do CNPq. É autor de "FHC, Forças Armadas e Polícia: Entre o Autoritarismo e a Democracia, 1999-2002", entre outras obras.

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