São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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CORAÇÃO SUÍNO

Como ocorre com qualquer mecanismo composto de peças, o corpo humano contém partes que podem "quebrar". O coração, por exemplo, pode falhar em virtude de moléstias ou como consequência de um estilo de vida pouco saudável. Há casos em que a reposição da peça "defeituosa" por meio de transplante pode salvar a vida do paciente.
Há duas dificuldades principais. Em primeiro lugar, a rejeição. Apesar de notáveis avanços nos últimos anos, ela não foi totalmente resolvida. O maior empecilho à massificação dos transplantes, porém, está na oferta insuficiente de órgãos. Parte dos que necessitam de um coração ou fígado novos morre nas filas.
Existem no horizonte pelos menos duas linhas de pesquisa para resolver essa situação. Uma trabalha com a idéia de "construir" o novo órgão a partir de células do próprio paciente. É a engenharia de tecidos, que se baseia na versatilidade das células-tronco, com capacidade de transformar-se em qualquer tipo de tecido. Há aqui objeções morais. A investigação com células-tronco está relacionada com a clonagem terapêutica, técnica que é veementemente recusada pelos setores mais conservadores.
A outra linha de investigação é a dos xenotransplantes, isto é, a utilização de tecidos animais. Uma empresa de biotecnologia britânica, a PPL, a mesma que criou a ovelha Dolly, anunciou, na semana passada, que conseguiu clonar porcos geneticamente modificados para não provocar rejeição. Como a fisiologia do porco é assemelhada à humana, a espécie torna-se excelente candidata a fábrica de órgãos para reposição.
A notícia é promissora, mas deve ser recebida com cautela. Os cientistas conseguiram silenciar nos porcos as duas cópias do gene que determina a produção de alfa 1,3 galactose, um açúcar que, acredita-se, faz com que o sistema imunológico humano rejeite enxertos de porcos. Teoricamente, o fígado ou o coração desses suínos pode ser implantado em quem necessite de transplante.
Da teoria à prática, porém, há um mar de dúvidas. É preciso saber se os tecidos desses porcos não provocam de fato rejeição. É estranho que a PPL tenha preferido divulgar sua pesquisa através de um "press release" e não pelo caminho ordinário da publicação em revista científica. As ações da empresa, aliás, sofreram brusca valorização com o anúncio. É preciso também verificar se os órgãos desses animais são plenamente funcionais. Indivíduos gerados por clonagem costumam apresentar anomalias. Outro temor diz respeito à possibilidade de que transplantes interespécies acabem por expor a humanidade a novas doenças, por colocá-la em contato com vírus de outras espécies. Temendo a contaminação, alguns países proíbem o xenotransplante até em caráter experimental.
Ainda não é para amanhã o sonho de encomendar pela internet um coração ou um rim novos, mas a tecnologia caminha nessa direção. Resta esperar que chegue lá com segurança para não trocar problemas velhos, como órgãos que falham, por novos, como um supervírus suíno.


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