São Paulo, sábado, 25 de setembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O marinheiro triste

RIO DE JANEIRO - Madrugada dessas, a chuva com rajadas frescas, como costuma dizer o boletim meteorológico, uma janela aberta na área de serviço, e lá fui eu impedir desastre maior. Havia uma garrafa de uísque em cima da pia, quase no fim, resolvi tomar aquela dose única antes de voltar para a cama.
Perdi o sono, e a pequena dose de uísque pediu outra. Apanhei uma garrafa nova e, para fazer companhia a mim mesmo, tive a triste idéia de ligar a TV. E dei de cara com um cara vagamente conhecido, que não identifiquei de pronto, dizendo besteiras sem fim a propósito de tudo o que lhe era perguntado.
De repente, descobri que o relógio no pulso esquerdo do sujeito era igual ao meu. Daí parti para a camisa, depois a voz, finalmente o rosto, e vi que era eu mesmo, numa entrevista antiga. Pelas referências ao 11 de Setembro, desconfiei que ela fora gravada em 2001. Falta de material para a grade da madrugada, sobretudo nas emissoras a cabo, e os programadores empurram material de arquivo.
Folguei que fosse tão tarde e, afora eu, ninguém deveria estar vendo e ouvindo aquilo. Mas o uísque, que não era grande coisa, ficou pior. Geralmente aproveito um intervalo no sono para ler ou ouvir música, ou simplesmente nada fazer, só pensar na vida e na morte da bezerra.
Lembrei um poema de Manuel Bandeira sobre o marinheiro triste que, alta noite, volta ao navio amarrado ao cais. "Ias triste e lúcido, antes melhor fora que voltasse bêbado".
Meu navio seria a cama, e nela me amarraria no cais do sono. Não estava bêbado nem disposto a beber demais. Na TV, o sujeito dizia que a terceira guerra mundial estourara com as torres do World Trade Center.
Logo em seguida, numa inesperada mudança de tema, ele jurava que nunca mais escreveria qualquer livro. Não por causa da guerra que estourava, mas por causa dele mesmo, que já estava estourado.
Desliguei a TV. Antes fora que não a tivesse ligado.


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