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CARLOS HEITOR CONY
O marinheiro triste
RIO DE JANEIRO - Madrugada dessas, a chuva com rajadas frescas, como costuma dizer o boletim meteorológico, uma janela aberta na área de
serviço, e lá fui eu impedir desastre
maior. Havia uma garrafa de uísque
em cima da pia, quase no fim, resolvi
tomar aquela dose única antes de
voltar para a cama.
Perdi o sono, e a pequena dose de
uísque pediu outra. Apanhei uma
garrafa nova e, para fazer companhia a mim mesmo, tive a triste idéia
de ligar a TV. E dei de cara com um
cara vagamente conhecido, que não
identifiquei de pronto, dizendo besteiras sem fim a propósito de tudo o
que lhe era perguntado.
De repente, descobri que o relógio
no pulso esquerdo do sujeito era igual
ao meu. Daí parti para a camisa, depois a voz, finalmente o rosto, e vi que
era eu mesmo, numa entrevista antiga. Pelas referências ao 11 de Setembro, desconfiei que ela fora gravada
em 2001. Falta de material para a
grade da madrugada, sobretudo nas
emissoras a cabo, e os programadores
empurram material de arquivo.
Folguei que fosse tão tarde e, afora
eu, ninguém deveria estar vendo e
ouvindo aquilo. Mas o uísque, que
não era grande coisa, ficou pior. Geralmente aproveito um intervalo no
sono para ler ou ouvir música, ou
simplesmente nada fazer, só pensar
na vida e na morte da bezerra.
Lembrei um poema de Manuel
Bandeira sobre o marinheiro triste
que, alta noite, volta ao navio amarrado ao cais. "Ias triste e lúcido, antes
melhor fora que voltasse bêbado".
Meu navio seria a cama, e nela me
amarraria no cais do sono. Não estava bêbado nem disposto a beber demais. Na TV, o sujeito dizia que a terceira guerra mundial estourara com
as torres do World Trade Center.
Logo em seguida, numa inesperada
mudança de tema, ele jurava que
nunca mais escreveria qualquer livro. Não por causa da guerra que estourava, mas por causa dele mesmo,
que já estava estourado.
Desliguei a TV. Antes fora que não
a tivesse ligado.
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