São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

História de terror e de esperança

JOAQUIN HERRERA FLORES e FLAVIA PIOVESAN

A barbárie do terrorismo deixa profundas marcas de dor no luto do 11 de março espanhol, com a morte injustificável de mais de 190 pessoas, somada ao universo de mais de 1.500 feridos, dentre eles trabalhadores, trabalhadoras, estudantes e imigrantes.
O 11 de março entra para a história do terror, em que a morte de vítimas civis inocentes resulta, sobretudo, de um choque de irracionalidades. À irracionalidade militar e política de governantes embebidos da tese do choque de culturas e sedentos tanto de petróleo como de dominação geoestratégica soma-se a irracionalidade de grupos terroristas, que, rompendo com os valores da compaixão e da fraternidade universal, exaltados por todos os dogmas religiosos, destruiu vidas, projetos e ilusões daqueles que Frantz Fanon denominava de "condenados da terra".
Se o 11 de março invoca a história do terror, o pós-11 de março, contudo, é capaz de invocar a história da esperança.
De um lado, o pós-11 de março permitiu a reação da população espanhola, que, por meio do legítimo exercício do direito de voto, inaugurou novas perspectivas de esperança no âmbito político interno. Após anos de renúncia ao poder cidadão, o 14 de março mostra ao mundo que com as armas da democracia se pode vencer as irracionalidades sob as quais vivemos. A cidadania se "empoderou", celebrando a soberania popular, que, mediante um processo democrático sereno e pacífico, produziu decisões políticas a respeito de quem governa e como se governa.


Só haverá direito à paz internacional com o primado da legalidade e com a legitimidade do consenso


Testemunha-se, ainda, a maturidade da Espanha democrática, que reafirma a luta contra o terror e pela paz, mas sob a crença na eficácia do Estado de Direito, no respeito à legalidade e às liberdades civis.
Por outro lado, o pós-11 de março acena à configuração de uma nova geopolítica mundial, com o fortalecimento do multilateralismo e com o repúdio ao unilateralismo exercido pelo poderio da única superpotência mundial, a clamar pela lógica da guerra e pelo primado da força. Atesta-se o fracasso no combate ao terror com instrumentos do próprio terror, a comprometer o aparato civilizatório de direitos e liberdades, sob o clamor de segurança máxima, o que tem propiciado o crescente isolacionismo político da superpotência.
Nesse quadro, o direito à paz internacional demanda maior equilíbrio da ordem mundial, por meio do avivamento do multilateralismo e do crescente protagonismo da sociedade civil internacional, a partir de um solidarismo cosmopolita. Nesse sentido, destacam-se as expressivas manifestações da sociedade civil em atos pela paz e contra a guerra, ocorridos em diversas partes do mundo no último 20 de março.
São essas as únicas forças capazes de civilizar o temerário "Estado da natureza" decorrente do choque de irracionalidades, pois só haverá direito à paz internacional com o primado da legalidade e com a legitimidade do consenso, a partir de um diálogo intercultural no qual a força do direito possa prevalecer em detrimento do direito da força.
O sacrifício que o jogo de irracionalidades impôs às tantas vítimas civis inocentes lança o desafio de fomentar avanços em busca de formas políticas, sociais, econômicas e culturais que contribuam com o processo de construção da paz, nos planos local, regional e global, ecoando a voz daqueles e daquelas que não mais aceitam que a história do terror siga vencendo a história da esperança.

Joaquin Herrera Flores, 45, é professor de teoria geral de direitos humanos e coordenador do Programa de Doutorado de Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha). Flavia Piovesan, 35, professora doutora de direito constitucional e direitos humanos na PUC-SP, professora visitante na Universidade Pablo de Olavide, é procuradora do Estado e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.


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