São Paulo, quarta-feira, 26 de maio de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Ainda sobre o contrapoder popular

FÁBIO KONDER COMPARATO

Suponhamos que alguém contrate um profissional para fazer um serviço que ele, contratante, não pode executar pessoalmente. Imaginemos que a pessoa contratada se revele de todo incapaz para o desempenho da tarefa que lhe foi atribuída ou que, em vez de fazer o serviço prometido, passe a desenvolver, com os recursos que lhe forneceu o mandante, uma atividade em proveito próprio. É óbvio que esse contrato de serviços será rompido, e o profissional inepto ou desonesto obrigado a indenizar o mandante do inteiro prejuízo a ele causado.
Procuremos agora transpor a mesma situação para o campo da política. Um chefe do Poder Executivo, por exemplo, descumpre descaradamente as promessas de campanha e, em lugar de se defender dessa grave incorreção de procedimento, simplesmente gasta o dinheiro do povo fazendo a propaganda do seu governo. O leitor não precisa dar tratos à bola para encontrar uma solução: em tais casos, não há, rigorosamente, nada a fazer.
Alguns dirão que isso não é verdade, que o povo dispõe de um instrumento adequado para se defender dos maus políticos: basta não reelegê-los. Acontece que esse meio de defesa só pode ser usado ao cabo de quatro anos, findos os quais nem Deus será capaz de reverter os malefícios praticados pelos governantes. Em matéria de políticas públicas, como ninguém ignora, o tempo mal despendido não pode nunca ser recuperado.


Em matéria de políticas públicas, como ninguém ignora, o tempo mal despendido não pode nunca ser recuperado


Contra esse defeito tradicional do regime representativo, dois remédios foram propostos e experimentados no passado: a revolução e o autogoverno popular.
A primeira solução, muito antes de Karl Marx, foi preconizada por John Locke e consagrada um século depois na Constituição francesa de 1793: "Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição é, para o povo inteiro e cada uma de suas parcelas, o mais sagrado dos direitos e o mais indispensável dos deveres". Mas, convenhamos, trata-se de um remédio heróico, que não pode ser aplicado com freqüência. Demais disso, a história já demonstrou fartamente que todo governo revolucionário tende a ser mais autocrático que aquele que o precedeu.
Quanto à solução do autogoverno popular, proposto pioneiramente pelos "levellers", na Inglaterra, na primeira metade do século 17, a sua impossibilidade prática salta aos olhos. As tarefas de governo exigem dedicação exclusiva e não podem ser desempenhadas nas horas vagas das ocupações particulares. Aliás, não se vê bem como o povo, em seu conjunto, possa agir coativamente contra si próprio e se submeter às sanções que ele mesmo editou.
Os empresários capitalistas, que sempre souberam defender competentemente os seus interesses, de há muito encontraram a verdadeira solução para o dilema, no quadro de suas empresas: é a instituição do poder de controle. Ele compreende, basicamente, três funções: 1) fixar as diretrizes gerais das políticas da empresa; 2) eleger os administradores e demiti-los a qualquer tempo; 3) fiscalizar a sua gestão e responsabilizá-los pelos prejuízos causados.
Pois bem, a transposição dessa estrutura de poderes para o campo das relações políticas representaria a instituição de uma soberania popular efetiva, e não meramente simbólica, como existe hoje. O povo passaria a ter o poder de: 1) fixar de tempos em tempos as grandes diretrizes de governo, à luz dos objetivos fundamentais da nossa República, definidos na Constituição (lembremo-nos de que o país vive há décadas sem um projeto nacional de desenvolvimento!); 2) destituir a qualquer tempo os chefes do Poder Executivo e dissolver as Casas Legislativas; 3) responsabilizar diretamente todos os agentes públicos, em qualquer dos órgãos do Estado.
Essa é a meta.
Como alcançá-la? Poderíamos começar a trabalhar em dois níveis, o nacional e o local. Em cada um deles, algumas entidades, realmente comprometidas com os interesses do povo e da nação, constituiriam um núcleo inicial de organização do poder de controle popular, com um programa de atuação bem determinado. Os partidos políticos não servem para isso, porque são agentes de disputa do poder de governo, não de controle de sua atuação. No plano local, todos aqueles que já trabalham em conselhos populares e movimentos de cidadania veriam assim seu campo de atuação ampliado.
O objetivo final é a instituição do elenco de prerrogativas definido mais acima. Como tarefa imediata, pode-se pensar, como me sugeriu recentemente Oded Grajew, que esses núcleos de organização da soberania popular promovam, anualmente, um fórum da cidadania, no qual a atuação dos governantes seria examinada e julgada em função do interesse público e das promessas de campanha.
Utopia? Pode ser. Mas ela corresponde ao próprio espírito da democracia.
Na famosa oração que pronunciou ao final do primeiro ano da Guerra do Peloponeso, Péricles ressaltou que em Atenas todos os cidadãos intervinham pessoalmente no governo da cidade. E acrescentou: "Nós somos, com efeito, os únicos a pensar que um homem que não se ocupa de política deve ser considerado não um cidadão tranqüilo, mas um cidadão inútil".

Fábio Konder Comparato, 67, advogado, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra.


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