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São Paulo, sábado, 26 de julho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

É apropriado que se decida em referendo sobre a proibição do comércio de armas?

NÃO

Um canto de fogo

OSCAR VILHENA VIEIRA

No último ano, mais de 46 mil pessoas foram vítimas de homicídio em nosso país. Isso nos coloca na vexatória posição de uma das nações mais violentas do mundo, com 27 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Esse número supera em muito o número de mortes nas duas recentes guerras levadas a cabo pelo maior império militar que a história já conheceu.
A violência, embora a todos afete, como tudo no Brasil, também é distribuída de maneira absolutamente desigual. Os mortos são prevalentemente jovens pobres, moradores das periferias e favelas das grandes cidades. A incidência de homicídios entre jovens de 15 a 24 anos é quase duas vezes maior do que entre adultos. Em algumas regiões de São Paulo e do Rio de Janeiro, a taxa de homicídios entre os jovens chega a ser de 438 vítimas em cada grupo de 100 mil habitantes, enquanto em regiões mais afluentes a taxa não atinge dois dígitos.
As causas dessa crescente barbárie são múltiplas e profundas. Passam pela desigualdade, pelo esgarçamento dos vínculos comunitários, pelo caos urbano, pela ausência de trabalho para largas parcelas da população, além da droga e do álcool. Por outro lado, os órgãos de aplicação da lei têm se demonstrado claramente impotentes em face do crescimento da criminalidade.
Se as causas são múltiplas, o instrumento pelo qual são perpetrados mais de 90% dos homicídios no Brasil é o mesmo: a arma de fogo. Embora não haja dados para todo o Brasil, é significativa a descoberta, de Guaracy Minguardi, de que quase 50% dos homicídios em São Paulo ocorrem entre pessoas que se conhecem e o autor dos disparos não tem passado criminal. Isso reforça a tese de que grande parte dos homicídios seria evitada se pessoas comuns não andassem armadas ou não tivessem armas de fogo em casa, onde, além de gerar acidentes, servem para oprimir e vitimar filhos e mulheres. Isso sem dizer que é uma ilusão acreditar que a arma de fogo efetivamente proteja uma pessoa comum. Como demonstram dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, o portador de arma de fogo tem uma chance 57% maior de ser vítima de latrocínio do que aquele que não porta uma arma.
No Brasil mata-se com revólver brasileiro que em nenhum momento teve uma existência legal. Ou são armas roubadas de alguém que as adquiriu legalmente, inclusive de policiais e seguranças privados, ou são armas que, exportadas para países fronteiriços, voltaram para cá ilegalmente. Assim é que se abastece o mercado dos criminosos. Assim é que a tensão derivada da miséria e a luta pela sobrevivência nas periferias sociais brasileiras se transformam em uma guerra sangrenta.
Apesar dos milhares de cadáveres, as elites políticas brasileiras não têm se sentido suficientemente constrangidas para atacar as causas desse massacre diário ou, ao menos, para buscar reformar instituições e leis que poderiam de alguma forma ter um impacto no combate à criminalidade. Há mais de uma década pendem no Congresso projetos de reforma da polícia e do Judiciário, que têm sido sistematicamente emperrados por interesses corporativos e por uma irresponsável inércia política.
Finalmente, nesta última semana, um passo importante parece ter sido tomado pelo Senado, que aprovou projeto de lei que restringe enormemente o acesso às armas de fogo no Brasil. Esse projeto tem um problema, no entanto. Sua medida mais dura, que se refere à proibição da comercialização de armas de fogo para a população civil em geral, depende de aprovação plebiscitária, marcada para outubro de 2005. É lamentável que após anos de omissão em criar uma política consistente de segurança, o Parlamento busque se esquivar da responsabilidade de enfrentar o lobby das armas e dos gigolôs da violência, transferindo à população a decisão.
A história da democracia, especialmente de suas crises, aponta que devemos tomar certos cuidados com arroubos plebiscitários. Não podemos, em nome da democracia, colocar em risco as próprias condições de perpetuação do jogo democrático ou os valores fundamentais em função dos quais constituímos os regimes democráticos, como o direito à vida. Há certas limitações que, em vez de fragilizar ou amesquinhar as democracias, tornam-nas materialmente mais sólidas e consistentes com os princípios de justiça que as informam. Embora haja pesquisas de opinião que apontem para uma tendência contrária às armas de fogo no Brasil, parece-me irresponsável que um tema absolutamente emocional como esse (pois muitas pessoas acham que estão mais protegidas portando armas) seja deixado ao jogo das paixões circunstanciais.
Nesse sentido, é responsabilidade do Congresso, tendo em vista as toneladas de informações colocadas a sua disposição, decidir se quer evitar milhares de mortes todos os dias ou se quer colocar uma população amedrontada à disposição daqueles que vêm há muitos anos entoando o canto de fogo das sereias, que agrava nosso holocausto cotidiano.


Oscar Vilhena Vieira, 37, professor de direito constitucional da PUC-SP e da Escola de Direito da FGV-SP, é diretor-executivo da ONG Conectas Direitos Humanos.


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