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TENDÊNCIAS/DEBATES
É apropriado que se decida em referendo sobre a proibição do comércio de armas?
NÃO
Um canto de fogo
OSCAR VILHENA VIEIRA
No último ano, mais de 46 mil
pessoas foram vítimas de homicídio em nosso país. Isso nos coloca na vexatória posição de uma das nações mais
violentas do mundo, com 27 homicídios para cada grupo de 100 mil habitantes. Esse número supera em muito o
número de mortes nas duas recentes
guerras levadas a cabo pelo maior império militar que a história já conheceu.
A violência, embora a todos afete, como tudo no Brasil, também é distribuída de maneira absolutamente desigual.
Os mortos são prevalentemente jovens
pobres, moradores das periferias e favelas das grandes cidades. A incidência de
homicídios entre jovens de 15 a 24 anos
é quase duas vezes maior do que entre
adultos. Em algumas regiões de São
Paulo e do Rio de Janeiro, a taxa de homicídios entre os jovens chega a ser de
438 vítimas em cada grupo de 100 mil
habitantes, enquanto em regiões mais
afluentes a taxa não atinge dois dígitos.
As causas dessa crescente barbárie são
múltiplas e profundas. Passam pela desigualdade, pelo esgarçamento dos vínculos comunitários, pelo caos urbano,
pela ausência de trabalho para largas
parcelas da população, além da droga e
do álcool. Por outro lado, os órgãos de
aplicação da lei têm se demonstrado
claramente impotentes em face do crescimento da criminalidade.
Se as causas são múltiplas, o instrumento pelo qual são perpetrados mais
de 90% dos homicídios no Brasil é o
mesmo: a arma de fogo. Embora não
haja dados para todo o Brasil, é significativa a descoberta, de Guaracy Minguardi, de que quase 50% dos homicídios em São Paulo ocorrem entre pessoas que se conhecem e o autor dos disparos não tem passado criminal. Isso
reforça a tese de que grande parte dos
homicídios seria evitada se pessoas comuns não andassem armadas ou não tivessem armas de fogo em casa, onde,
além de gerar acidentes, servem para
oprimir e vitimar filhos e mulheres. Isso
sem dizer que é uma ilusão acreditar
que a arma de fogo efetivamente proteja
uma pessoa comum. Como demonstram dados da Secretaria da Segurança
Pública do Estado de São Paulo, o portador de arma de fogo tem uma chance
57% maior de ser vítima de latrocínio
do que aquele que não porta uma arma.
No Brasil mata-se com revólver brasileiro que em nenhum momento teve
uma existência legal. Ou são armas roubadas de alguém que as adquiriu legalmente, inclusive de policiais e seguranças privados, ou são armas que, exportadas para países fronteiriços, voltaram
para cá ilegalmente. Assim é que se
abastece o mercado dos criminosos. Assim é que a tensão derivada da miséria e
a luta pela sobrevivência nas periferias
sociais brasileiras se transformam em
uma guerra sangrenta.
Apesar dos milhares de cadáveres, as
elites políticas brasileiras não têm se
sentido suficientemente constrangidas
para atacar as causas desse massacre
diário ou, ao menos, para buscar reformar instituições e leis que poderiam de
alguma forma ter um impacto no combate à criminalidade. Há mais de uma
década pendem no Congresso projetos
de reforma da polícia e do Judiciário,
que têm sido sistematicamente emperrados por interesses corporativos e por
uma irresponsável inércia política.
Finalmente, nesta última semana, um
passo importante parece ter sido tomado pelo Senado, que aprovou projeto de
lei que restringe enormemente o acesso
às armas de fogo no Brasil. Esse projeto
tem um problema, no entanto. Sua medida mais dura, que se refere à proibição
da comercialização de armas de fogo
para a população civil em geral, depende de aprovação plebiscitária, marcada
para outubro de 2005. É lamentável que
após anos de omissão em criar uma política consistente de segurança, o Parlamento busque se esquivar da responsabilidade de enfrentar o lobby das armas
e dos gigolôs da violência, transferindo
à população a decisão.
A história da democracia, especialmente de suas crises, aponta que devemos tomar certos cuidados com arroubos plebiscitários. Não podemos, em
nome da democracia, colocar em risco
as próprias condições de perpetuação
do jogo democrático ou os valores fundamentais em função dos quais constituímos os regimes democráticos, como
o direito à vida. Há certas limitações
que, em vez de fragilizar ou amesquinhar as democracias, tornam-nas materialmente mais sólidas e consistentes
com os princípios de justiça que as informam. Embora haja pesquisas de opinião que apontem para uma tendência
contrária às armas de fogo no Brasil, parece-me irresponsável que um tema absolutamente emocional como esse (pois
muitas pessoas acham que estão mais
protegidas portando armas) seja deixado ao jogo das paixões circunstanciais.
Nesse sentido, é responsabilidade do
Congresso, tendo em vista as toneladas
de informações colocadas a sua disposição, decidir se quer evitar milhares de
mortes todos os dias ou se quer colocar
uma população amedrontada à disposição daqueles que vêm há muitos anos
entoando o canto de fogo das sereias,
que agrava nosso holocausto cotidiano.
Oscar Vilhena Vieira, 37, professor de direito
constitucional da PUC-SP e da Escola de Direito
da FGV-SP, é diretor-executivo da ONG Conectas
Direitos Humanos.
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